São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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A morte do filósofo

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - O suicídio do filósofo Gilles Deleuze está provocando a natural compaixão de seus amigos, admiradores e discípulos, mas está criando um equívoco elementar que só se justifica pela emoção do próprio suicídio.
Tanto na França como no Brasil, o fato está sendo encarado como o suicídio de um filósofo -e já nem importa saber de que tamanho e qualidade o filósofo foi. O equívoco é banal: quem se atirou pela janela de um apartamento em Paris não foi um filósofo e sim um homem. Um homem doente, em estágio terminal, ligado permanentemente a tubos que o ajudavam a respirar e a manter as funções vitais, um homem sem mais controle sobre o próprio corpo.
No estado lastimável em que Deleuze se encontrava, tanto fazia fosse ele um filósofo, um comerciante, um filatelista, um banqueiro ou um garçom aposentado. Quando se fala em suicídio e em intelectual, a citação de Albert Camus é obrigatória. Ele não chegou a suicidar-se, morreu em um acidente de carro, mas deixou uma frase que é muito citada: "O suicídio é o único problema que se apresenta ao homem".
Evidente que há suicídios de filósofos e suicídios filosóficos. Não foi o caso de Gilles Deleuze. Sem entrar no mérito de seu pensamento, nascido em um momento específico (maio de 1968), o salto que deu, semana passada, em direção à morte, não foi uma expressão existencial ou simplesmente mental.
Foi a carne ferida e ultrajada que não mais suportou o opróbrio. Um filósofo estóico teria encontrado razões para ir até o fim. Um filósofo cristão consideraria aquele estágio final como necessário à limpeza moral da contingência humana. Um filósofo existencialista não teria esperado que a doença chegasse a ponto tão aviltante.
Gilles Deleuze temia que, com a continuação da doença, ele perdesse em escala definitiva o livre arbítrio de escolher. Na situação em que se encontrava, as alternativas eram morte com mais dor e morte com menos dor. Sua escolha nada teve de filosófica. Foi apenas sensata.

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