São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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radicais livres

CAIO TÚLIO COSTA

"Da série sobrevivência" (1987), instalação de Jenny Holzer em S. Francisco (EUA)
Observações: UNIVERSO ONLINE
radicais livres
manifesto produzido por grupo negro 'radical' nega Darwin, mas perdoa Garrincha
Radicais quase não existem mais. Os últimos estão em guerra. Matando ou se deixando matar. Vide Europa Central, terrorismo, fundamentalismo, Israel.
O radicalismo romântico, livre (no sentido profundo do livre-pensar), o lavrador das raízes das coisas acabou. Transformou-se em subproduto absorvido pelo dito mercado -essa coisa que parece se sobrepor às ideologias, consome os "ismos" e os enfeixa embalados e rotulados nos devidos nichos.
No mercado de idéias cabem tanto neoliberais quanto radicais, estes últimos compreendidos enquanto tal e, por isso mesmo, desculpados. O rótulo provoca tolerância. Poucos se surpreendem com os radicalismos. Mesmo o pior dos terrorismos, pela brutalidade de sua banalização via meios de comunicação de massa, passa a ser consumido mais ainda como informação -e a dor e a indignação se restringem aos diretamente atingidos pelas perdas.
Por isso, é sem sobressaltos que se lê o "Manifesto dos Novos Filósofos", panfleto produzido por um grupo negro engajado na "consciência radical contra um Brasil "racista, excludente e antidemocrático".
Sim, o país exercita mesmo um lado racista, produz um mundão de excluídos, e antidemocracia é adjetivo que encontra substância em determinados momentos.
Falar três verdades -lá vem o truísmo- não leva, necessariamente, a uma outra verdade. Assim, os autodenominados "novos filósofos" vão buscar força retórica na negação do que chamam de "lixo cultural europeu decadente, individualista, narcisista e esquizofrênico".
Olhe o que eles dizem recusar: "A antiguidade clássica greco-romana! Aristóteles e sua lógica! Descartes e seu racionalismo! Kant e seu criticismo idealista transcendental! Voltaire e Sérgio Paulo Rouanet! A razão iluminista e a Revolução Francesa! Nietzsche e seu irracionalismo! A semiologia, Roland Barthes e Umberto Eco! Ezra Pound, James Joyce e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos! Adorno, W. Benjamin e a modernidade! A psicanálise e Jacques Lacan! A pós-modernidade e seus símbolos! Michel Foucault e seu nietzscheanismo! Heidegger e seu ontologismo subjetivista! Franz Kafka, Samuel Beckett e Gerald Thomas! Hegel e o idealismo alemão, sustentáculos do freudismo e do lacanismo! A arte européia clássica, contemporânea, de vanguarda, antiarte, objectual e conceitual! Merquior e seu intelectualismo maniqueísta, barroco-rococó do ancien régime! Adam Smith, Roberto Campos e Delfim Netto! Renato Mezan e Freud! Herbert Spencer, Charles Darwin, Augusto Comte, Conde Gobineau e Vauche de Lapouge, que são a própria expressão do racismo moderno!"
Ufa. (Eles perdoam alguns. Estão entre os bons, e poucos, gente como Chopin, André Breton, Fernando Pessoa, Brecht, Fassbinder e... Garrincha.) Dramático é que a pretensa rejeição a tantas formas de pensamento, algumas delas legitimamente radicais -porque se firmaram num tempo em que o radicalismo era algo mais do que ferramenta mercadológica-, não causa mais nem estupor e nem dó. Parece aquela criança irritada com a mãe, batendo o pé e exclamando "Eu te odeio".
Pois é. Radicais, e livres, hoje em dia, só mesmo aquele lixo celular explicado pela biologia. E olhe que a cosmética já tem como combatê-los. E viva Zumbi!
P.S. Só não entendi por que enfiaram Gerald Thomas no meio dessa turma.

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