São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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cada cabeça um mundo

MARILENE FELINTO

Também povo enche o saco. O povo todo debaixo das marquises em dia de chuva grossa na cidade grande: o palavreado das conversas morria abafado pelo ruído das trovoadas, logo depois revivia na lamúria da chuva, iluminado aqui e ali por um acento de raiva e revolta como por um raio de relâmpago.
Enquanto o ônibus não vinha, o povo se queixava disso e daquilo. A mulher idosa amaldiçoava o preço do plano de saúde Amil que o filho pagava para ela: quase dois salários mínimos por mês, agora que ela completara 60 anos. Então, no Brasil, era envelhecer e ser punido por isso.
Já não bastava a decrepitude do corpo, a aposentadoria indecente, faziam questão de humilhar a pessoa no que ela mais precisava, o tratamento de saúde. Aumentavam quando e quanto queriam o tal do plano. Afinal, onde a Amil enfiava o dinheiro do mês em que ela não ia ao médico? No bolso deles, estava claro. E o presidente não fiscalizava.
Mas que ela desse graças a Deus de ter o filho que podia pagar, um homem virou-se para dizer. Pois outros apodreciam nas portas dos hospitais públicos. Que ele também tinha um plano com muito sacrifício, Golden Cross, a mesma patifaria. Todos ladrões que roubavam à luz do dia, mas ninguém fazia nada.
Outro homem, meio lúmpen, entrou agressivo na conversa. Que estavam reclamando de barriga cheia, que no INSS "eles nem é atendem a pessoa". Deixou a marquise como se fosse um erro ter estado ali, saiu resmungando na chuva: "Eles nem é atendem a pessoa, uma po...!". Seguiram-se comentários sobre a doidice do lúmpen, a revolta deslocada, atribuíram tudo ao excesso de bebida, às drogas.
Breve silêncio enquanto a água escorria em bica do teto da marquise e os carros passavam salpicando lama. As almas verdadeiramente torturadas amargavam a leve surpresa da dissidência do lúmpen. Alguém sentenciou que, com tanto vagabundo no mundo, o presidente queria agora demitir trabalhador, funcionário público, "o escumbau".
As opiniões dividiram-se. Estava correto, funcionário não fazia nada. "Tem juiz aí ganhando 30 mil reais. Três vezes mais do que o presidente. Quem paga o salário deles é a gente. Tem que demitir esses marajás." Os ânimos exaltaram-se ligeiramente: quem tinha dito que juiz podia ser demitido? Trouxas. Iam demitir a gente miúda, os assalariados, os pais de família. O presidente não estava nem aí com gente pobre.
Surpresa com as referências à pessoa do presidente, armei uma ou duas frases: que um homem sozinho não podia fazer nada, que numa democracia muitas coisas e cabeças estavam envolvidas, que a gente é que escolhia errado os políticos.
Um vento mais frio bateu na vergonha da minha cara, nas pernas nuas das mulheres pobres, na roupa castigada dos homens. Ninguém falou. Também eu devia deixar a marquise como se não coubesse ali -o povo era um saco porque era meu espelho, eu que também era povo e achava que, com meu discurso de gabinete, fazia algo por ele.
Já ia pegar o primeiro táxi quando escutei um homem dizer, o sotaque sertanejo na cidade grande: "Sim, que o erro é do povo no voto. É como se diz, cada cabeça uma cabeçada." O ônibus chegou, mas eu não fui. Não coube. Ou melhor: cedi meu lugar, saí andando na chuva, só para me castigar.

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