São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Você decide... às vezes

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Problemas alheios costumam ser menores e mais simples do que os nossos. É por isso que, embora tenhamos dificuldade para equacionar nossas vidas, podemos determinar com facilidade o que melhor convém aos outros.
Infelizmente, palpites salvadores raramente são recebidos com tapete vermelho e banda de música. Via de regra são repelidos, às vezes com veemência, por frases como: "Meta-se com a sua vida!".
É por isso que, além de entreter, o programa "Você Decide" tem função terapêutica: desreprimir nosso talento para orientar o próximo. Através do voto secreto, que mostra o desinteresse da contribuição, apontamos ao personagem indeciso o caminho da correção e justiça, sem o risco da ingratidão como pagamento.
Àqueles que votam em maioria,
é concedida a satisfação adicional de verem seguidas suas diretrizes. Fosse a TV realmente interativa, dariam tapinhas nas costas do personagem, por obedecer à voz da razão.
Mas, só para contrariar, no "Você Decide" de 28 de outubro a vontade do telespectador era irrelevante para o desfecho da história. O que, aliás, me lembra que o senador eleito com meu voto assumiu um cargo executivo e foi substituído por um suplente em quem eu não votaria.
Mas, vejamos: tímido e traumatizado, Alexandre beira os 20 anos ainda virgem. Rodrigo, seu melhor amigo, contrata Camila, garota de programa, para seduzir Alex e desrecalcá-lo, sem revelar que está a trabalho.
Camila é bonita e simpática, e, embora não demonstre em cena, parece culta e inteligente. Deve adorar música; talvez cante "Twisting my Sobriety", de Tanita Tikaram, com graça e afinação. Muito querida, como se diz no sul.
Camila se aproxima de Alexandre, puxa conversa, vai ficando, vai ficando, e "ficam". Na manhã seguinte, o rapaz já está de bem com a vida, apto a entoar a canção dos Paralamas: "Eu hoje joguei tanta coisa fora, eu vi o meu passado passar por mim...."
Voltam a se encontrar, enamoram-se, apaixonam-se. Rodrigo pressiona Camila, exigindo -em vão- que ela se afaste do amigo. Ensaia contar a verdade a Alexandre, mas teme desapontá-lo. A Alexandre, Camila dá a entender ter "manchas" no currículo, mas ele diz só lhe interessar o que sente por ela.
Resolvendo morar juntos, o casal convida parentes e amigos para um jantar comemorativo. É agora ou nunca: deve Rodrigo revelar a Alexandre, diante dos pais deste, que Camila (já fora da profissão) era garota de programa?
A apresentadora Renata Ceribelli pede a última consulta ao povo. Em Contagem (MG), seis em sete pessoas dizem "sim" (Rodrigo deve contar), mas o repórter, brilhante estatístico, conclui que "a contagem está dividida", com ligeira vantagem para o "sim".
Resultado final: 58 mil "sim", 35 mil "não". Obediente, Rodrigo delata Camila, mas Alexandre nem liga. Reafirma a Camila, mas parece falar ao telespectador, que não lhe interessa o passado dela. Casam-se.
Ora, quem votou "sim" considerava grave o fato de Camila ter sido garota de programa. Não é forçado supor que, para a maioria dessas pessoas, tal fato era, mais do que grave, condenável. Senão, qual a importância de revelá-lo?
Dessa forma, o "sim" parece ter respondido também a uma segunda questão, não formulada e mais delicada: deve um rapaz de boa família recusar casamento com a amada, ao saber que ela foi garota de programa?
Segundo o roteiro, a dupla se casaria de qualquer jeito. Na igreja, não tiveram bênçãos de amigos e parentes. E do telespectador, tinham?
Eu? Teria feito Rodrigo calar o bico.

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