São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ajuste fiscal e poder

ANTONIO KANDIR

A disputa entre o presidente Clinton e o Congresso dos Estados Unidos, majoritariamente republicano, talvez nos ajude a perder um pouco do complexo de inferioridade. E quem sabe sirva para que alguns organismos financeiros internacionais livrem-se do preconceito de que "há coisas que só acontecem abaixo do Rio Grande".
Lá, como cá, a questão do ajuste fiscal está no centro da disputa política e a dificuldade em resolver o problema não se deve à falta de capacidade técnica ou de firmeza nas decisões. A falta de firmeza é um argumento recorrente e popular para explicar a persistência de desajustes fiscais temerários.
Já é hora de as pessoas perceberem que, nem mesmo nas decisões familiares sobre o orçamento, reina só a vontade do patriarca. O que dizer então de decisões que implicam toda a sociedade e o sistema político?
A origem da disputa entre Clinton e os republicanos está na proposição que estes incluíram no "Contrato com a América", segundo a qual o déficit fiscal deveria chegar a zero até o ano 2002. A demagogia é patente: ao mesmo tempo em que exigem a zeragem do déficit em 2002, os republicanos propõem corte de impostos e elevação dos gastos militares.
Clinton defende uma redução mais gradual do déficit fiscal e recusa-se a concentrar os cortes em programas sociais, em sua proposta de orçamento para 96 enviada ao Congresso. Os republicanos a rejeitaram e formou-se o impasse que levou à suspensão dos serviços federais de natureza não-essencial desde a última terça-feira.
Simultaneamente, formou-se um novo e conexo impasse, por conta das condições impostas pelo Congresso quanto ao pedido, feito por Clinton, de aumento do teto de endividamento do Tesouro.
O impasse do endividamento tem repercussões internacionais, dados os temores que um eventual "default do governo americano desperta nos mercados financeiros do mundo.
Há razões doutrinárias por trás da disputa entre Clinton e os republicanos, há diferentes concepções sobre o papel do Estado e a organização da sociedade, há dificuldades para avaliar-se o efeito fiscal líquido das medidas em debate. Mas tudo isso não explica o enrijecimento de posições, tanto mais que as partes não ignoram as repercussões financeiras internacionais de um impasse prolongado.
O que está em pauta é uma tremenda e decisiva disputa de poder, às vésperas das eleições presidenciais de novembro de 96, num momento de redefinição histórica da sociedade de afluência que caracterizou os EUA por muitas décadas. Guardadas as óbvias diferenças entre um país e outro, essa história não nos soa familiar?

Texto Anterior: Papel positivo dos fundos de pensão
Próximo Texto: BNDES vai supervisionar privatizações nos Estados
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.