São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Perversões ocultas

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os mistérios de um mundo crescentemente integrado por fluxos transnacionais de mídia, de capital e de mercadorias, mas paradoxalmente fragmentado pela emergência de mercados consumidores e identidades políticas segmentadas, constituem uma das grandes questões da atualidade.
A dinâmica que se estabelece em torno de repertórios culturais veiculados pela indústria cultural rompe com a idéia de que a comercialização universal de produtos levaria a uma total integração de espectadores e ouvintes enquanto consumidores uniformes. Nas inúmeras tentativas de dar conta desse processo, o espectador, o consumidor em suas relações com a indústria, emerge como foco central de análises de matizes teóricas as mais diversas.
Estudos realizados na linhagem de Adorno, Horkheimer e Habermas, ou trabalhos que se apóiam no referencial de Gramsci ou Bourdieu, ou ainda que adotam uma perspectiva pós-moderna, compartilham a noção de que o significado veiculado em produtos culturais industriais não se esgota nas relações de produção que os informam ou nas convenções dos textos veiculados. Embora esses níveis de análise, referentes à situação de produção, não possam ser desprezados, eles só são plenamente compreensíveis, enquanto componentes aptos a legitimar núcleos de poder capazes de sugerir totalidades, quando relacionados aos mecanismos de recepção.
Em torno desse denominador comum, a polêmica sobre a indústria cultural se reveste de um caráter empobrecedor: de um lado, os que se dobram diante das promessas "democratizantes" acenadas pela flexibilização da mercadoria, e, de outro, os que insistem em apontar para o caráter homogeneizador, essencialmente autoritário da produção cultural de massa.
O reconhecimento da polissemia de sentidos engendrados levou à noção de que o consumo desses bens é um processo ativo. As análises de conteúdo ideológico, que se contentavam em confirmar a reprodução da ideologia dominante, tornaram-se insatisfatórias diante da necessidade de entender os mecanismos concretos por meio dos quais a indústria opera em interlocução permanente com o mercado.
Reconhecer no espectador e nos significados diversos, possivelmente resultantes de sua interação com a indústria cultural, um elemento dissonante, capaz de ameaçar a uniformidade acachapante que caracterizaria a cultura de massas, levou alguns autores a saudar de maneira acrítica a produção cultural concentrada em um número cada vez menor de megaempresas transnacionais.
Mas, se de um lado os produtos dessas empresas atendem e produzem nichos cada vez mais específicos do mercado, por outro, no limite, elas se constituem em sistemas monstruosos, capazes de controlar o fluxo de informações no planeta. Soluções populistas do tipo das que atribuem ao público uma capacidade criativa ilimitada de resistir aos conteúdos uniformizadores veiculados pela indústria também acrescentam pouco.
Mais do que se ater a questões teóricas persistentes, interessa entender os mecanismos por meio dos quais produtos da indústria cultural captam e expressam modificações em curso em ordens sociais concretas. Trata-se de entender os mecanismos de identificação entre o espectador homogêneo e o espectador enquanto membro de uma audiência heterogênea, segmentada de acordo com variáveis como classe social, raça, gênero, preferência sexual e território geográfico. E o interesse dessa pesquisa está em perceber modificações inusitadas nas definições do que é assunto público e privado, feminino e masculino.
"The Corbett and Fitzsimmons Fight", um documentário sobre uma luta de box de 1897, chamou a atenção dos jornais da época pela quantidade de mulheres que atraiu para a audiência. Esse público inusitado compareceu provavelmente atraído pela possibilidade de desfrutar "do espetáculo proibido de corpos masculinos seminus". Essa história, que abre o livro de Mirian Hansen "Babel and Babylon" (Chicago University Press, 1991) é ilustrativa das modificações na "topografia dos domínios públicos e privados", nos termos da autora. Para Hansen, as transformações na esfera pública americana estão imbricadas com a emergência da indústria do cinema em Hollywood.
Nessa busca por conexões entre os produtos e os consumidores e consumidoras na sua contingência demográfica empírica, as transformações nas relações de gênero emergem como tema privilegiado na bibliografia. Hoje não é possível abordar o assunto sem levar em conta as consequências inusitadas da apropriação consumista do desejo feminino na dinâmica de uma esfera pública, que, em suas raízes, foi idealizada como espaço essencialmente masculino.
Não se trata, neste debate, de tecer juízos de valor generalizantes, mas de detectar criticamente, em casos específicos, as perversidades que emergem pelo caminho e que podem se constituir em elementos cerceadores da constituição de sociedades plenamente democráticas e igualitárias. A diluição de barreiras entre a política e a intimidade pode ser uma delas. A reificação de identidades étnicas e raciais puras pode ser outra.

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