São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Alfinetes & barbárie

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O século 18 já ia avançado e Adam Smith maravilhava-se com o aumento da produção de alfinetes que se conseguia com a divisão do trabalho em tarefas especializadas. Ele poderia ter usado um exemplo mais antigo de aumento de produtividade pela divisão do trabalho: a gravação em madeira para ilustrações impressas, uma área em que a especialização das tarefas e a sua coordenação há mais de dois séculos vinha permitindo multiplicar os livros e folhetos ilustrados. É que Adam Smith estava preocupado com a indústria e não com a cultura, que não produz a "riqueza das nações". Mas a riqueza das nações produz o aumento dos consumidores de cultura. Portanto a cultura torna-se um produto rentável. Então por que não investir nela, como mais um ramo da indústria? E, se é rentável, por que não organizá-la como os outros ramos da produção em grande escala: tecnologias, especialização, plantas produtivas com divisão e coordenação por funções, criações e expansão de mercados e assim por diante?
Esquematização primária, dirá alguém. Claro que é, mas não está longe de retratar o que aconteceu a partir do século 19. E o resultado desse processo ganhou um nome que acabou exprimindo uma das facetas centrais do mundo contemporâneo: cultura de massa. Essa expressão híbrida (porque amarra a dimensão qualitativa da cultura à dimensão quantitativa da massa) é responsável por consideráveis devastações florestais, pelo papel gasto no seu debate. As massas amesquinham a cultura? A cultura, ao difundir-se, se democratiza? (Terrível equívoco conceitual, aliás, já que a democracia tem a ver com o modo de criar e usar governo e não com o modo de criar e usar símbolos). Ao ganhar proporções de massa, a cultura se torna homogênea e controlável? Ou incontrolavelmente heterogênea? Importa mais o modo como se produz e difunde a cultura ou o modo como ela é consumida? E assim por diante.
Não se trata de questões banais. Elas têm a ver com uma dimensão central de um mundo marcado mais do que nunca pela expansão do domínio do mercado. E este é o ponto: ao assumirem proporções realmente globais, os processos culturais ganham importância em vez de se diluírem numa espécie de éter homogêneo, como talvez se pensasse há algumas décadas. No caso de um mercado tão específico como é o de produtos culturais, a plena expansão capitalista significa mais do que ampliar seu volume e seu alcance em escala global. Significa também multiplicar a presença de formas heterogêneas de produção cultural "local". Na realidade, os padrões de produção e difusão cultural em grande escala entraram nas décadas recentes na sua fase "pós-fordista". Nesta etapa, dá-se uma reorganização que tem mais a ver com questões de qualidade e de diversificação do que com a simples escala de produção e o tamanho do mercado. O traço pioneiro disso, que aliás já começava a se manifestar quando a expressão "cultura de massa" entrou em uso corrente em meados do século, é a segmentação do mercado. Em vez de só apostar no consumidor médio busca-se o produto certo para o segmento certo do mercado. A idéia primária de uma "massa" como um aglomerado amorfo de consumidores isolados e indiferenciados desde cedo foi complementada (mas não necessariamente substituída) pela imagem de conjuntos de indivíduos com disposições ao consumo semelhantes. Além das suas vantagens mercadológicas, essa concepção permitiu colocar em foco uma faceta básica dos processos culturais: a de que, quando se trata de bens simbólicos e não de automóveis por exemplo, todo consumidor sem exceção já é portador de alguma modalidade desses bens -eventualmente também como produtor.
Devemos então concluir que não há mais porque falar de "cultura de massa" e que entramos decididamente num mundo social e culturalmente marcado pela fragmentação, pela heterogeneidade e pela diferenciação? A cultura global que se vai constituindo, em que todos entram com o seu pedaço, é também aquela em que importa o pedaço de cada qual e não a homogeneidade do conjunto? Apaga-se assim a imagem que se foi construindo neste último meio século, do poder crescente de um número reduzido de conglomerados empresariais, com bases em Estados nacionais dominantes, sobre os processos produtivos de bens simbólicos em grande escala e sobre os fluxos da comunicação social?
Talvez seja melhor olhar isso com mais cautela. Certamente o quadro atual não é o mesmo que nos anos 40, quando os críticos mais agudos dos processos culturais propunham a substituição do termo "cultura de massa pelo de "indústria cultural. O argumento era que o grosso do que circulava como cultura não era próprio das massas mas, pelo contrário, era imposta a elas pelo jorro avassalador de uma oferta sem alternativas reais (na realidade, se massas havia, elas eram criaturas e não sujeitos desse processo). E esse caráter avassalador advinha de que as diversas instâncias produtoras e difusoras de bens simbólicos, regidas pela lógica do mercado, tendiam a articular-se num sistema fechado, em que cada parte reforça as outras e depende delas.
Claro que a concepção envolvida ia muito além disso, mas é essa idéia do sistema que nos importa agora. Pois ela permite assimilar uma diferença, esta sim decisiva, entre as condições naquela época e as atuais. É que agora tudo aquilo que se procurava englobar nos conceitos de "cultura de massa" e, mais precisamente, de "indústria cultural", em vez de constituir a expressão mais abrangente nessa área passou a ser um mero subsistema, parte integrante de algo muito mais complexo, o mundo informatizado.
Aumentou portanto a complexidade do conjunto maior. Mas é no mínimo arriscado sustentar que isso se deve à sua fragmentação em um universo heterogêneo de unidades autônomas. Antes de apostar nisso convém ficar atento à idéia, bastante plausível, de que estamos atingindo um novo patamar de complexidade nessa área, com tudo o que isso envolve, especialmente no tocante à integração do conjunto e ao controle dos processos. Os desenvolvimentos em escala acelerada de linguagens, equipamentos e processos no tratamento da informação, a concentração em escala planetária da propriedade e do controle sobre a produção de bens simbólicos nas áreas da expressão (as artes) e do conhecimento (as ciências), a redefinição do Estado Nacional, tudo isso aponta para um quadro em que os problemas expressos um tanto toscamente na noção de cultura de massa não só persistem como ganham nova importância.
Uma das vantagens do conceito de indústria cultural em relação ao de cultura de massa consiste em sair da oposição entre quantidade e qualidade, que rapidamente gera a falsa alternativa entre um elitismo que deplora a "massificação da cultura" e sua outra face, o democratismo mambembe que celebra a extensão das facilidades de acesso aos chamados bens culturais. A saída se dá pela oposição entre economia e heteronomia cultural. A base material para isso encontra-se na constatação de que nas sociedades modernas inverteu-se a proporção entre os fluxos culturais "espontâneos", dominantes nas sociedades tradicionais, e os explicitamente "produzidos". A produção, e cada vez mais a produção mercantil, ganha primazia também nessa área. Não se trata, aqui, de ficar lamentando a "mercantilização", mas de pensar criticamente as condições sociais concretas da cultura. E essas estão marcadas pela heteronomia, tanto do processo cultural como um todo (regido pela lógica "industrial" da produção) quanto dos seus participantes (reduzidos a "unidades de escolha" num mercado altamente oligopólico).
A essa caracterização pode-se responder de vários modos. Em primeiro lugar, o número dos que têm escolha ampliada de serviços culturais vem aumentando e não diminuindo no mundo todo. Isso faz sentido, se pensarmos em números absolutos. Mas é preciso considerar que a proporção global entre os fruidores sofisticados de bens culturais e os antigos e novos consumidores da produção em massa certamente se alterou no sentido oposto. Quando muito (mas isto já é importante) há "ilhas de autonomia", capazes de gerar segmentos específicos no mercado. Se elas poderão crescer e articular-se ao ponto de dar o tom para o conjunto é outra questão, de longo prazo -mas é uma questão decisiva, do ponto de vista da formulação de políticas culturais.
Outro argumento importante é que a ênfase no controle dos processos produtivos e de difusão leva a negligenciar a peculiaridade do consumo de bens culturais. O que os caracteriza, afinal, é o fato de serem significativos. Portanto, eles não são "consumidos" sem mais, mas precisam antes ser interpretados. E os consumidores, integrantes de meios sociais particulares, já trazem consigo padrões de interpretação, que eles aplicam aos supostamente estandardizados produtos que recebem. À primeira vista trata-se só de uma questão de grau. Na realidade o mundo social como um todo é um universo de interpretações, e nem o mais simples dos objetos (uma pedra no meu caminho, por exemplo) escapa disso. A diferença dos objetos culturais, claro, é mais funda: eles são intrinsecamente significativos, simplesmente não existem como tais quando não são interpretados.
Admitamos, então, que os processos interpretativos que se dão em meios sociais diversos (e, no limite, em cada indivíduo na sua intimidade) introduzem diferenças naquilo que foi lançado em enorme escala no mercado (um programa de TV de grande audiência, digamos). Seria um grave erro desconsiderar esse aspecto dos processos significativos na sociedade em nome de um domínio monolítico dos meios de difusão sobre a massa dos seus consumidores. Mais errado ainda seria abandonar por isso a tese da primazia dos processos de produção e difusão cultural sobre o consumo.
É claro que isso é reconhecido: só faz sentido segmentar o mercado quando se sabe que nele há diferenças de padrões de consumo a explorar. Pois essas diferenças não são misteriosas, podem muito bem ser pesquisadas e exploradas em termos mercadológicos. No limite, a questão reduz-se a isto: de quem é a iniciativa nesse processo? Dizer que a fragmentação e a heterogeneidade contemporâneas (na medida em que existam) deslocaram a autonomia e a iniciativa para os indivíduos e os grupos locais seria no mínimo precipitado. Estamos, afinal, num mundo marcado por uma primazia de dimensão econômica que deixaria perplexo qualquer "marxista vulgar" do início do século. E a contrapartida disso na área da infocultura (valha o neologismo) são aglomerados empresariais que deixam na sombra qualquer sistema imaginado pelos velhos teóricos da indústria cultural.
Isso tem importância direta para as políticas culturais e, na realidade, para a dimensão política como um todo. Alguns efeitos dessas novas circunstâncias aparecem com frequência no debate, como os relativos à territorialidade do Estado nacional na era das redes. Mas aqui importa apenas uma faceta do problema, que condensa toda a importância contemporânea da intersecção entre cultura e política, e ainda permite retomar a questão da nova heterogeneidade cultural.
Faz sentido a observação de que as tendências à constituição de unidades políticas multinacionais são acompanhadas por um aumento e não diminuição das diferenças culturais, na forma de costumes, línguas, peculiaridades artísticas. Ao grande movimento dos controles tendencialmente globais respondem as particularidades locais. Nessa dinâmica, entretanto, há o risco de perder-se algo fundamental. É que a cultura, na sua concepção mais exigente, é inseparável do impulso à universalidade. Envolve precisamente a transcendência do meramente particular e local para buscar valer para a humanidade toda; e, nas suas formulações mais rigorosas, esse "valer" significa que os objetos culturais em questão são livre e racionalmente aceitáveis.
Ora, é exatamente a dimensão universalizante da cultura que fica comprometida quando a sua realização se dá a partir de fora: em nome dos imperativos do mercado e não das suas exigências próprias. Voltamos então a apostar tudo nos "focos de resistência" do local e do particular? É precisamente isso que deve ser evitado em nome da promessa civilizatória inscrita na cultura moderna e que sempre lhe deve ser cobrada: a de ser capaz de converter experiências humanas compartilhadas em bases para formas de convivência que valham a pena. Está aí o desafio para as novas políticas culturais: perseguir, pelas vias públicas e cidadãs, e sem ignorar as particularidades, a universalidade dos processos culturais. Tarefa difícil. Mas, se não enfrentada, as grandes redes globais, deixadas por sua conta em nome da suposta obsolescência dos seus fundamentos sociais, acabarão por sufocar uns e deixar outros entregues à barbárie dos costumes e ao fanatismo das idéias.

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