São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O que fazer com pratos sujos

MICHAEL KEPP
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lavar os pratos soa como uma tarefa razoavelmente inocente. Mas pedir a um adolescente da classe média brasileira para molhar suas mãos -a menos que estejam numa prancha de surfe- é quase uma declaração de guerra.
No passado, a mamãe contornava esses conflitos graças a uma empregada "full time". Esta, descendente das escravas que traziam seus conhecimentos da senzala para a casa-grande, tem sido o verdadeiro motor da liberação da mulher brasileira da classe média e não, como poderia se pensar, o movimento feminista. A empregada permitiu à dona-de-casa maior acesso à ginástica, ao shopping e ao mercado de trabalho.
Mas agora, o salário mínimo maior dessa empregada, combinado com a disparada dos preços de outros serviços -devido ao Plano Real-, têm feito, cada vez mais, com que a empregada "full time" seja um luxo. Essa nova realidade tem escravizado a mãe da classe média no lar e, principalmente, no menos convidativo habitat, a cozinha.
Por que "o menos convidativo?". Essa mãe, cuja família também tinha uma empregada "full time" quando ela era moça, acabou descobrindo a geladeira. Mas nunca conheceu, no sentido íntimo, o fogão, a pia e os utensílios básicos da cozinha.
Isso explica o repertório culinário dessa mãe da classe média. Tendo eu experimentado o mesmo, sugiro que, além de planejar as refeições, ela deveria se preparar para uma revolta armada. De todas as tarefas domésticas novas e não-reconhecidas dessa mulher, lavar os pratos é a mais humilhante. Não pelo trabalho em si, mas porque isso desmascara sua posição como sendo a mais baixa na escada familiar.
O típico marido brasileiro, cujas mãos não se molham -a não ser com uma cervejinha gelada-, só cogita em lavar pratos se ele acabou de perder seu emprego e não tem nada de interessante na TV. E a maioria dos adolescentes aprende, desde que suas babás arrumaram suas primeiras bagunças, que isto é trabalho da "classe baixa".
Algumas dessas mães privilegiadas, especialmente aquelas sem profissão, reforçam esse desequilíbrio doméstico. Inseguras de encarar a vida em casa sem seus filhos, elas retardam o desabrochar deles, protegendo-os de tudo -começando com as tarefas domésticas mais simples. Dessa maneira, o filho homem, o mais protegido das tarefas, aperfeiçoa seu papel como o típico marido brasileiro.
A combinação da empregada "full time" e da mãe coruja tem gerado adolescentes em cujo mundo "mágico" os quartos e as camas se arrumam por si. É também um reino no qual os pratos têm asas. Se não, como desaparecem da mesa e surgem na pia e depois na prateleira?
Porque eu fui criado na América protestante -onde quanto mais se trabalha, mais chances se tem de chegar ao céu-, os pratos de minha família não foram agraciados com asas, mas com mãos. Aquelas que eu usava para lavá-los e secá-los. As mesmas mãos que usava para botar fora o lixo, lavar o carro, varrer as folhas e cortar a grama.
A mãe brasileira da classe média, querendo um similar nacional, é só mandar os rebentos para um programa de intercâmbio. Em seu retorno, há boas chances que a louça esteja bem esfregada, só se suas cucas também tiverem passado por uma lavagem.
Se mandar seus filhos para "fora" não for possível, ou se parece arriscado demais -já que eles podem querer ficar por lá-, siga as seguintes "dicas" se quer convencê-las a lavar os pratos:
1) Não os mande fazer isto. O resultado será tão bom quanto mandá-los estudar para o vestibular num sábado à noite;
2) Não use ameaças se você não for cumpri-las, pois seus filhos não vão te respeitar. E se você cumpri-las, eles vão te odiar. Esqueça o mito de que os adolescentes gostam de limites;
3) Não lhes diga, como no chavão, "é dando que se recebe". Eles vão fazer o mínimo e depois exigir ingressos para o próximo show de rock;
4) Não fale que irá amá-los mais se eles lavarem os pratos. Se essa chantagem emocional tão óbvia até passa por sua cabeça, você agora sabe porque eles preferem o papai;
5) Não lhes diga que, quanto mais rápido eles aprenderem a ser responsáveis, melhor preparados estarão para competir na "neo-selva" lá fora. Pois, dessa forma, eles ficarão traumatizados e nunca vão querer sair da "barra da saia. Não tem a mínima graça arrumar a bagunça de um filho de 45 anos, que ainda não sabe nem onde está guardado o papel higiênico.
Minha única sugestão, sem qualquer garantia, na questão adolescente/pratos: palavras apelativas, proferidas de joelhos, mesmo que pareça um pouco com uma súplica.
Ou quem sabe, se a atual desaceleração econômica, por azar, desempregue seu marido e não passe nenhum jogo de futebol na TV, talvez assim ele pense em secar os pratos.

Texto Anterior: Rumo à evolução científica
Próximo Texto: FEITIÇOS DA CULTURA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.