São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FEITIÇOS DA CULTURA

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A cultura de massa é uma ilusão". Tivesse sido dita por Itamar Franco, Fernando Collor ou mesmo José Sarney, a frase entraria imediatamente para o repertório do anedotário nacional, envolvendo os personagens palacianos.
Mas não. Seu autor é Fernando Henrique Cardoso, que, além de presidente da República, é sociólogo. Mais que isso, um sociólogo vaidoso, de renome internacional, que pesa as palavras e, se gosta de provocar com tiradas bem-humoradas as idéias feitas usadas pelos colegas, detesta passar por alguém que diz besteiras.
Sendo assim, a frase de FHC, noticiada pela Folha na edição do último dia 7, já virou motivo de polêmica séria entre seus pares acadêmicos. Trata-se, é verdade, de uma jogada de efeito, um "mot d'esprit", bem ao gosto presidencial, mas que não deixa de aludir a um problema real.
Ficou obsoleto falar em cultura de massa? Este mundo, que todos dizem estar passando por transformações profundas e de desfecho ainda incerto, está enterrando também a idéia da cultura subordinada à lógica fordista, da linha de montagem e da massificação?
Antes de ir adiante, é preciso contextualizar o dito presidencial. FHC discursava no último dia 5, no Teatro Nacional de Brasília, durante a solenidade de comemoração do Dia da Cultura.
Quase no final, soltou a "bomba": "Por mais que se imagine que nós vivemos hoje num mundo em que a sociedade é de massa e que a cultura é de massa, isto é uma ilusão, porque a cultura, no momento em nós vivemos hoje, ela está ultrapassando este limiar da imaginação de que tudo se resolvia através da cultura de massa para outra vez ver-se que houve uma fragmentação imensa de tudo, inclusive dos públicos e dos criadores. É preciso, outra vez, que haja uma quase -perdoem-me e não me entendam mal- volta à artesania num novo patamar".
A seguir, FHC partiu para o exemplo: "Visitei recentemente a Volkswagen na Alemanha, e agora os senhores podem visitar a Volkswagen em Resende (no Rio de Janeiro). O chassi do caminhão, que vai sair de Resende, tem o nome do artesão responsável, do operário que é especializado, que é responsável por aquele chassi. Nós estamos vivendo uma nova revolução tecnológica que faz revalorizar esses aspectos da criatividade, de responsabilidade individual, da liberdade, porque é preciso ter liberdade para ser responsável. Isso se funde com a cultura".
Não deixa de ser sintomático que, durante um encontro sobre cultura, o exemplo dado por FHC para sinalizar nossa integração ao processo de mudanças no planeta tenha sido tirado de uma fábrica de automóvel. Nisso ele não inovou.
A metáfora do carro acompanha o imaginário nacional em seu esforço de modernização desde Juscelino Kubitschek. Com Collor, o produto local foi reduzido à condição de "carroça" no confronto com o modelo estrangeiro. Logo em seguida, na gestão Itamar, o incentivo estatal à volta do velho Fusca funcionou como emblema da democratização do consumo. O recado, ainda que ilusório, era inequívoco: no nosso país até o pobre poderá comprar o seu carrinho.
Mas, além de ser estranho à cultura, o exemplo de FHC tem um problema ainda maior. A "assinatura" do operário no chassi que fabrica não tem como objetivo estimular a "criatividade do artesão responsável", como ele diz. É antes uma nova prática da Volkswagen para assegurar o controle de qualidade dos seus produtos.
Ao ser solicitada pela Folha a esclarecer qual a finalidade dessa prática, a Volks do Brasil enviou por escrito a seguinte explicação: "Mais do que um ato simbólico (...)" trata-se de uma "nova prática adotada pela Volkswagen para controle de qualidade. Cada chassi -de ônibus e caminhão- 'made in Resende' terá o telefone e a 'griffe' do 'mestre' responsável pela qualidade do veículo. A 'griffe' permitirá que o cliente saiba a quem reclamar".
Estamos, portanto, diante de um daqueles casos que os marketólogos da nova ordem produtiva costumam chamar de imperativos da "qualidade total". Alguém do outro lado do balcão, afinado com a fraseologia marxista, poderia dizer que se trata simplesmente de mais uma exigência do capital. É ele quem responsabiliza o operário, cujo trabalho continua não tendo nada de criativo e muito menos está ligado a qualquer exercício de liberdade individual.
Fim da massificação?
Desfeito o equívoco, o problema permanece irresolvido. Os públicos específicos e os artistas específicos aos quais se refere FHC colocam, ao menos na esfera da cultura, em xeque a velha idéia da massificação? Ou, dito de outra forma, a segmentação dos mercados desautoriza que se fale simplesmente em indústria cultural?
Se depender dos artigos que o Mais! publica hoje, a resposta é sim e não. Ninguém refuta o fato -óbvio, mas nem sempre levado em conta- de que a cultura atingiu níveis inéditos de mercantilização e está hoje subordinada à lógica da mercadoria. As diferenças surgem nas consequências que cada um tira desse fato.
O filósofo José Arthur Giannotti, por exemplo, que sempre torceu o nariz diante das análises da Escola de Frankfurt sobre a "sociedade administrada", sustenta em seu texto que o "universo do consumo está passando por um processo de diversificação de tal modo inesperado e fantástico, que destrói por completo todos os prognósticos propostos a respeito de sua função social e de seu papel alienador".
Na mesma linha, o empresário Roberto Muylaert, ex-secretário de Comunicação do governo FHC, diz que a "segmentação dos mercados não elimina o conceito de massa, que ainda vai prevalecer por muito tempo, mas começa a criar um público importante fora da chamada indústria cultural".
Coisa muito diferente defende a filósofa Olgária Matos, cuja condenação da indústria cultural acompanha par e passo algumas das idéias de Adorno. Citando o filósofo alemão, Olgária lembra que a luta contra a cultura de massa só pode ser feita quando se aponta o nexo entre a sociedade massificada e a persistência das desigualdades sociais em seu interior.
Feitas as contas e descontados os detalhes de argumento, o debate pode ser resumido mais uma vez pelo título de um livro de Umberto Eco. Trata-se de uma nova disputa entre "apocalíticos e integrados", com a diferença de que estes últimos, a começar pelo presidente, partiram agora para o ataque, acusando os primeiros de estarem insistindo à toa na defesa nostálgica de posições obsoletas.
A situação atual não deixa de lembrar também o enorme esforço feito pela sociologia norte-americana nos anos 50 e 60 para se livrar da carga indigesta que a expressão "indústria cultural", forjada 20 anos antes por Adorno e Horkheimer, trazia em sua definição. Foi, curiosamente, invocando as qualidades supostamente democratizantes da "cultura de massa" e da "sociedade de massa" que teóricos como Daniel Bell e, sobretudo, Marshall McLuhan, com sua defesa dos "mass media", tentaram neutralizar o pessimismo frankfurtiano, cuja análise desembocava numa crítica avassaladora da cultura mercantilizada.
Eufórico, McLuhan exaltava as maravilhas da "aldeia global". Não menos otimista, FHC convoca todos a uma nova "artesania" pós-industrial. Ambos se excluem? Talvez não. De suas posições aparentemente antagônicas surge um inegável ar de família. A família dos otimistas, daqueles que, como o dr. Pangloss de Voltaire, acreditam que estamos vivendo no "melhor dos mundos possíveis".

Texto Anterior: O que fazer com pratos sujos
Próximo Texto: O trecho do discurso de FHC
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.