São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Para líder, 'papa está mal-informado'

MARCELO COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE DHARMALA

Leia mais trechos da entrevista com o Dalai Lama.

Folha - Como compatibilizar a idéia de responsabilidade universal com a tendência crescente ao individualismo, verificada em muitas sociedades ocidentais?
Dalai Lama - A responsabilidade universal de cada um de nós não implica uma renúncia aos interesses pessoais ou à individualidade. Eu acredito que o interesse individual é muito ligado ao interesse da coletividade.
Antigamente era possível viver no isolamento sem ser afetado por outros acontecimentos -como o povo tibetano viveu durante séculos. Hoje, é impossível.
Isto acontece também com os países e com as culturas. Veja o caso da América Latina: a partir do momento em que algo acontece com a economia mexicana, vocês são afetados de maneira muito mais rápida e profunda do que no passado. Isso aumenta a responsabilidade de cada um de nós e, ao mesmo tempo, torna a irresponsabilidade de um muito mais prejudicial para todos. Não deve haver contradição entre a responsabilidade universal e o interesse pessoal.
Folha - Um raciocínio bastante interessante, mas que pode ser explorado de maneira inversa, como foi -ou ainda é- por alguns regimes totalitários.
Dalai Lama - Se você se refere à antiga URSS ou à China, deve estar falando da "responsabilidade coletiva", a idéia de que o indivíduo deve esquecer de seus interesses em favor do Estado, que teoricamente representaria a comunidade. Nesse sentido, dizia-se que o sacrifício dos benefícios individuais resultaria em benefícios para toda a comunidade.
Acreditando nisso, muitos indivíduos chegaram a sacrificar sua própria vida em nome do que acreditavam ser um benefício comum. Mas, em nossa visão, o indivíduo tem o direito de ser feliz.
A possibilidade de contato social -da qual todos necessitamos- é que nos faz desenvolver um sentimento de responsabilidade universal, de compaixão para com os outros.
Folha - A falta dessa compaixão parece ser um problema crescente em algumas sociedades ocidentais.
Dalai Lama - Ela se deve principalmente à ignorância sobre a nossa natureza interdependente. Milhões de pessoas vivem sozinhas em nossas cidades, sem ter com quem dividir seus sentimentos. Isto gera um estado de perpétua agitação, que é muito difícil de se carregar ao longo da existência.
O maior problema está na ênfase sobre o desenvolvimento material. Obcecados em persegui-lo, negligenciamos alguns aspectos básicos da natureza humana, como, por exemplo, nossa necessidade por amor, companhia.
Se nos descuidamos da cooperação, da ajuda ao outro, qual o valor desse progresso material?
Folha - Mas, sem esse progresso, como atender às necessidades mínimas do ser humano: alimento, abrigo, etc?
Dalai Lama - Veja, esse progresso é importante para a felicidade, na medida em que atende as necessidades mínimas do corpo, mas não é garantia de sua obtenção. O desenvolvimento material e o espiritual não andam de mãos dadas.
Altos níveis de vida não eliminam o sofrimento e a busca espiritual. As pessoas percebem, por meio de seu sofrimento, as limitações do dinheiro. Ele está lá, mas o indivíduo não é feliz.
Para ser uma pessoa feliz, as pessoas necessitam não apenas de um mínimo de condições materiais, mas também de algo mais, que, a princípio, aparece como um vazio. Para preencher esse vazio elas partem em uma busca do sagrado, que pode se manifestar de formas diferentes para cada um.
Folha - Mas isso acaba dando origem a uma mercantilização do sagrado. Veja por exemplo o caso do filme "Pequeno Buda", de Bernardo Bertolucci...
Dalai Lama - Bem, em primeiro lugar, você precisa notar que os avanços da informação se dão em todos os campos. Para as pessoas no Ocidente, é hoje muito mais fácil ter informação sobre nossa religião, não só em livros, jornais ou na televisão, mas até na tela do computador. Alguns monastérios, e nós mesmos aqui em Dharamasala, estamos conectados com o resto do mundo pelo computador.
No caso do filme, ele estimulou o interesse pela nossa filosofia, mas é claro que a história de Buda não pode ser transcrita fielmente, assim como a de Cristo.
Folha - Por falar em Cristo, o papa escreveu em seu último livro ("Cruzando o Limiar da Esperança") que o budismo seria um sistema ateísta, uma maneira passiva de ver o mundo, em uma suposta oposição ao catolicismo, que desempenharia um papel mais ativo.
Dalai Lama - O papa está mal-informado. Em alguns casos, quando a vida é muito complicada, pode ser que os indivíduos procurem se isolar em torno de si próprios, e sob esse aspecto o budismo, que estimula a reflexão e a introspecção, pode ter um aspecto mais atrativo.
Na vida monástica budista nossos monges e freiras permanecem mais isolados da sociedade, ao contrário dos monges e freiras cristãos, mais ativos e envolvidos com a sociedade.
Isto pode ter levado o papa a ter uma visão equivocada de nossa religião. A base do budismo é compaixão pelos outros seres viventes, com base em um senso de responsabilidade universal.
Seria essa uma maneira passiva de ver o mundo?
Folha - Despertar essa compaixão baseada na responsabilidade parece que tem sido uma das maneiras de levar adiante a luta pela libertação do Tibete.
Dalai Lama - Exatamente. Por meio da divulgação não só de nossa cultura, mas também da repressão que os tibetanos vêm sofrendo em seu próprio país e da destruição do nosso meio ambiente, procuramos mostrar que nossa luta -sempre pacífica- não é apenas para libertar um povo, mas para fazer valer certos princípios universais: a autodeterminação dos povos, o direito à sobrevivência das culturas etc. Não somos contra os chineses. Mas hoje, no Tibete, seu comportamento se assemelha ao de potências coloniais do passado.

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