São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
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Filmes iorubás estreitam laços entre Brasil e África

LÚCIA NAGIB
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LAGOS

A convite da Folha e do Cinema da Universidade de São Paulo (Cinusp), o professor Onookome Okome, da Universidade de Calabar, na Nigéria, estará apresentando um programa de filmes iorubás a partir de 20 de novembro em São Paulo. O programa se liga aos eventos relativos aos 300 anos da morte de Zumbi e pretende contribuir no sentido de estreitar os laços entre a cultura brasileira e a africana.
Em entrevista à Folha, em Lagos, Okome explicou as principais características dos filmes incluídos na mostra, que giram essencialmente em torno das lendas dos orixás, figuras bastante familiares aos brasileiros, em especial aos adeptos do candomblé e da umbanda.

Folha - Qual a procedência desses cineastas e "videomakers" iorubás?
Okome - Alguns tiveram um aprendizado especificamente cinematográfico, como Ola Balogun, mas a maioria provém do teatro ambulante iorubá, que alcançou grande popularidade nos anos 40 e 50. Os anos 60 e 70 ofereceram uma razão sociológica para a transformação desse teatro em cinema, a principal delas, o salto econômico resultante do boom do petróleo. As pessoas passaram a ter dinheiro para comprar televisores e aparelhos de rádio, e se desinteressaram do teatro ambulante. Assim, os produtores teatrais se voltaram para o cinema. É preciso ressaltar que Ola Balogun foi o primeiro a produzir um filme iorubá em 1970, "Adjani Ogun", mas para isso utilizou uma companhia de teatro ambulante. A partir dos anos 80, porém, tornou-se impossível para esses cineastas adquirir material em 35 ou mesmo 16 mm, então eles passaram para o vídeo.
Folha - A que público se dirigem essas produções?
Okome - Essas produções contam com um público fiel nas áreas de língua iorubá, principalmente no sudoeste nigeriano, mas também em áreas onde há grandes comunidades iorubás, como Kano, Jos, Kaduna, ou mesmo ao longo da costa oeste africana, em países como Togo, Benin e Costa do Marfim. É um público que já vinha do teatro ambulante. A diferença é que os pobres irão ver esses filmes nos cinemas, quando o diretor leva seu filme de um lugar para o outro. É um tipo de cinema que "persegue" seu público, especialmente em época de festivais. Já os ricos podem assistir a esses filmes em casa, em seus aparelhos de vídeo. Também em público os filmes são apresentados em vídeo, e evidentemente, quando projetados em telão, perdem qualidade. Mas o público está menos interessado na beleza, do que no enredo e nos atores, que vêm do teatro ambulante.
Folha - Pode-se dizer que há diferentes gêneros, dentro do cinema iorubá?
Okome - Sim, existe um modelo estrutural que se pode encontrar em quase todos os filmes. Inicialmente, os filmes eram menos estruturados em torno da existência metafísica iorubá, porque eram feitos por intelectuais, como Ola Balogun, que haviam estudado cinema na Europa. Mas quando os artistas do teatro ambulante se apossaram da produção, formou-se o arranjo cíclico que corresponde à conformação psíquica do povo iorubá. Isso pode ser encontrado em quase todos os filmes de Ogunde, Ladi Ladebo etc. Em meu estudo, traço duas categorias hipotéticas, que não chego a chamar de gêneros: de um lado, filmes mais sérios quanto à essência metafísica do universo iorubá, que chamo de "filmes metafísicos"; de outro, coloco as comédias, que mantêm uma relação remota com esse universo metafísico, embora também mostrem a forma como a sociedade iorubá se organiza.
Folha - O que são exatamente os filmes metafísicos?
Okome - São os que extraem seus temas e estilo da cosmologia iorubá, que é predominantemente animista. Nesses filmes, há uma estreita relação entre a existência dos homens e dos deuses. Entre essas duas esferas, há ainda o mundo dos não-nascidos. Quando algo acontece no mundo físico ou humano, trata-se de algo decidido pelos ancestrais ou os deuses. Por exemplo, no filme "Oxé Xangô", Xangô oferece a um humano um dom, para que ele cumpra uma determinada função. Essa pessoa utiliza erradamente seu poder, causando uma calamidade social. Para que a harmonia volte a reinar, é preciso aplacar a ira de todos os deuses envolvidos no processo. Folha - Em seus ensaios, você dá grande ênfase às figuras de Exu e Ogun. Por quê?
Okome - Exu e Ogun são figuras complementares. Ogun é o deus da estrada, do ferro, do metal, da caça e também o deus da essência criativa. Os iorubás consideram Ogun o mais importante dos orixás, porque precisam lidar com ele no dia-a-dia. Ogun é dotado de uma característica binária: encontra-se no centro da criação, mas é também a essência destrutiva. A lenda diz que Ogun se embebedou e destruiu seu próprio povo.
Essas qualidades são mediadas por Exu, o deus enganador, mas também o deus da regeneração. Depois de enganar todo mundo, o sacrifício correto é adivinhado por Ifá e então a ordem se restabelece. Exu não é o diabo, como fizeram crer os cristãos. Não é apenas o mal, mas um catalisador para a solução dos desequilíbrios sociais.
Folha - Qual o significado desse programa dentro das comemorações ligadas aos 300 anos de Zumbi?
Okome - Se os eventos de Zumbi pretendem não apenas valorizar uma cultura, mas também influenciar a política cultural, esse programa terá grande importância, porque se baseia nas fontes do universo de Zumbi enquanto negro, enquanto alguém que possuía um sentido histórico de sua raça. Esse senso lhe deu a ousadia e a integridade para desafiar outras culturas. O senso histórico da cultura de origem deu a Zumbi força intelectual e física para se opor a outros tipos de cultura que pretendiam submetê-lo. Ele tentou preservar uma cultura que é hoje parte importante da cultura do Brasil. O programa de filmes iorubá tenta reforçar esse aspecto.

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