São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 1995
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Zumbi é Palmares

HELIO SANTOS

O tricentenário da morte do líder libertário Zumbi dos Palmares, cuja comemoração ocorre hoje, é uma oportunidade ímpar para homenagear e reconhecer um dos maiores nomes que a história do país conheceu. É uma oportunidade especialíssima porque recai sobre um modelo ausente nesse tipo de reconhecimento nacional: o negro brasileiro. Depois, tal homenagem vem com um atraso secular.
É ainda especial porque contempla um herói que, ao não aceitar a condição de escravo, liderou todo um povo em busca do maior bem que o homem pode conquistar na face do planeta: a liberdade. Pode soar nostálgico para alguns -quando se esboça uma nova ordem mundial, cujo caráter é supranacional- falar, nos tempos de hoje, neste ideal tão antigo. Entretanto, a perenidade do tema se mantém.
Zumbi pagou com a vida, como Tiradentes, pelo ideal da liberdade. Os heróis, autenticamente libertários, ao darem suas vidas na luta pelos seus ideais, sinalizam para todos nós uma parábola: a morte é um preço justo para se conquistar a liberdade -ou ainda: não vale a pena viver a vida sem ela. O heroísmo de Zumbi não se circunscreve às eventualidades das invasões e guerras a que o país incorreu. Zumbi, efetivamente, encarnou o papel do líder libertário em uma época em que a maioria da população era escrava.
Segundo a Fundação IBGE, 44,2% da população brasileira é "preta" e "parda", isto é: negra e afro-mestiça. São mais de 65 milhões de afro-brasileiros! Considerando tudo isso, outra dimensão não poderia ter Zumbi do que a de um herói nacional da maior relevância. Antes de qualquer coisa: relevância ética, se considerarmos o sentido da luta de Zumbi e a forma com que tombou na defesa de seus ideais. Mais: é também relevante do ponto de vista político, cultural e histórico, pois este país tem a sua vida, sua história e sua maneira de ser conectadas definitivamente com o negro.
Apesar da importância de Zumbi, não se deve separar sua figura daquilo que foi e representou Palmares. Por isso afirmamos: Zumbi é Palmares. A solidariedade e a cooperação, associadas a um espírito de luta pela liberdade, levaram os palmarinos a uma economia de abundância. A destruição física de Palmares não apagou da nossa memória o tipo de sociedade que ali se erigiu.
A forma como se deu a Abolição levou os escravos e seus descendentes a uma cidadania incompleta. É que a Abolição não se fez acompanhar por medidas que permitissem aos negros dispor do que havia em Palmares: acesso à terra e amor próprio, o que viabilizava a cidadania. A falta de condições materiais em conjunto com a baixa estima são fatores que muito dificultam a construção de uma identidade racial negra positiva. A liberdade, estritamente física, sem medidas que materializassem a cidadania, foi o que a Lei Áurea nos trouxe. O Brasil preto e pardo e miserável pode ser revertido em um Brasil de excelência, não excludente, tipo ISO-9000.
Não esqueçamos que Palmares foi um tipo de sociedade cujo padrão é considerado bem avançado para o século 17. Se há mais de 300 anos os negros-quilombolas foram capazes de produzir em suas multiculturas um padrão de excelência agrícola bem superior ao atingido pelas fazendas que se escudavam na escravidão e na monocultura; é de se esperar que seus descendentes, hoje, possam obter a mesma performance nos mais diferentes setores da vida. Não adianta aqui o jargão simplista que diz ser necessário "apenas" vontade política para se fazer essa revolução.
Hoje, além da óbvia vontade política, sem a qual não se inicia nada, dependemos do "modus operandi" e da definição de quais linhas de ações devemos lançar mão. Trata-se de combater uma miséria petrificada e antiga, onde parte da dificuldade está nas próprias pessoas beneficiárias dessa mudança. Tais subcidadãos foram roubados daquilo que seus ancestrais dispunham com sobra em Palmares: auto-estima elevada, o que é um referencial básico para que o ser humano possa lutar por si mesmo.
É que foram antes massacrados por uma mídia que busca embranquecer tudo e todos. Fomos mergulhados em uma senda falsa, que em sua eurocentrificação exacerbada colonizou o país em termos estéticos. Tudo isso impediu e impede a emergência de uma cara nacional que possa impor uma identidade compatível com a nossa realidade. Há uma esquizofrenia brasileira nisso tudo: temos no espelho nossa cara (que, além de européia e indígena, é fartamente negra e afro-mestiça) e não gostamos muito dela -apesar de sabê-la especial. Nos macaqueamos de outras coisas, já que não nos animamos com o que vemos. O que ocorre é que temos ouro bruto e puro, mas preferimos bijuterias bem desenhadas.
Por outro lado, não podemos permanecer nesta trilha do círculo vicioso: não se pode continuar a tratar de maneira igual pessoas que são atávica e secularmente desiguais.
O país terá que se encaminhar por uma política de ação afirmativa que facilite a introdução e manutenção dos afro-brasileiros nas escolas, no mercado de trabalho e nos meios de comunicação. A forma de executar essa política não deverá seguir os padrões adotados por outras sociedades, tendo em vista nossas peculiaridades. Aqui, ao contrário dos Estados Unidos, a presença negra seduziu a cultura dominante, transformando-a em um agente cuja potencialidade nossas elites colonizadas não tiveram olhos de ver. Tal potencial vem sendo desperdiçado de maneira perversa. A maximização dessa energia deve ser empreendida pelos reconstrutores de um novo e imenso Palmares, que não seja excludente, injusto e discriminador e que possa absorver a todos em sua dimensão continental de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
O sacrifício de Zumbi e seus irmãos de luta, trucidados após resistirem longamente, exige de todos nós este modelo de nação -modelo que foi testado e aprovado pelos palmarinos por mais de cem anos.

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