São Paulo, quarta-feira, 22 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Conflito étnico revive Segunda Guerra

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

Três anos antes da guerra na ex-Iugoslávia, eu estava em Banja Luka (hoje bastião dos sérvios-bósnios) pesquisando a vida do ex-secretário-geral da ONU Kurt Waldheim na Segunda Guerra Mundial.
Ele tinha integrado a Kampfgruppe Westbosnien, que supervisionou a expulsão em massa de dezenas de milhares de sérvios e o posterior massacre deles.
Visitei o campo de concentração de Jasenovac, onde os homens tinham sido decapitados, e as mulheres, estripadas por açougueiros profissionais croatas.
Perguntei a vários sobreviventes da guerra o que poderia ter transformado esses gentis eslavos em monstros tão repugnantes.
Eles abanavam a cabeça, sem saber o que dizer -exceto pelo sérvio em Banja Luka, que se recusou a falar comigo porque o motorista do meu táxi era croata.
Foi então que me lembrei do Líbano e percebi que haveria uma guerra civil na Iugoslávia.
Muito tempo depois de a guerra começar, fiz a mesma pergunta a um estudante croata quando o levei de carro para sua casa.
Por que tamanha selvageria? Por que os estupros em massa, os campos de concentração, a "limpeza étnica" -cometidos tanto por croatas quanto por sérvios?
"Somos um povo sem instrução, não-civilizado", me disse o rapaz. Nos três anos seguintes eu ouviria o triste refrão repetido.
Nós, no Ocidente, havíamos aprendido a admirar a Iugoslávia de Tito, havíamos visto a luta da resistência contra a Alemanha nazista sob uma ótica romântica.
Não havíamos percebido que a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra civil na Iugoslávia, um conflito que Tito e seus sucessores imediatos congelaram por 46 anos, mas que só poderia ressurgir das velhas valas comuns depois do degelo da paz comunista imposta.
Cinicamente, nós, ocidentais, de início, indignamo-nos mais com a "limpeza cultural" do que com a "limpeza étnica": o bombardeio de Dubrovnik, a destruição das mesquitas do século 16.
Quando visitamos os campos de concentração e falamos com as muçulmanas estupradas, esquecemos que as execuções não diferiam daquelas da Segunda Guerra.
A Bósnia, em lugar de ser o pior conflito desde a Segunda Guerra Mundial, era uma medonha continuação dela, e o fato de não nos darmos conta disso levou à humilhação internacional, a uma situação em que a bem-intencionada ONU -corrupta, impotente, criatura arrogante da década de 90- se viu conversando com os criminosos de guerra.
Quando saí do campo de concentração de Manjaca, em 1992, deixando para trás prisioneiros cujos ossos eram visíveis por baixo da pele, o que me veio à mente foram as visitas da Cruz Vermelha aos campos nazistas.
Sim, escreveram seus representantes na época, eles haviam sido bem-recebidos, os comandantes alemães eram corteses. E não é verdade que nós e os diplomatas europeus que nos acompanhavam bebemos com aqueles monstros?
Sim, todos nós temos parte na culpa, e todos tivemos dificuldade em explicar como esses povos dos Bálcãs podem cometer coisas tão terríveis uns contra os outros.
Foi uma mulher sérvia -num lugar inusitado: Zagreb, capital croata- quem chegou mais perto de me explicar esse fenômeno assustador. Ela disse que os povos da ex-Iugoslávia são iguais: croatas, sérvios e muçulmanos, que, até serem convertidos ao islamismo, haviam sido sérvios também.
Ela disse que o ódio entre irmãos é mais intenso do que entre vizinhos; que nada é mais assustador do que olhar no rosto do inimigo e enxergar o próprio reflexo.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: GLOSSÁRIO
Próximo Texto: Para especialista, acordo é ruim
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.