São Paulo, sábado, 25 de novembro de 1995
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Um mundo sem fronteiras

RUBENS RICUPERO

Vive-se hoje, em matéria de economia e comércio, um aparente paradoxo. O êxito final da Rodada Uruguai do antigo Gatt e a fundação da OMC (Organização Mundial de Comércio) deveriam, em princípio, ter desencorajado as tentativas de criação de zonas de comércio regional.
Ao contrário, assiste-se não só à progressiva consolidação de acordos anteriores, como a União Européia, o Nafta e o Mercosul, mas ao lançamento ou revitalização de iniciativas ainda mais ambiciosas.
Dois acontecimentos recentes puseram de novo em evidência a tendência cada vez mais rigorosa em direção aos grupos regionais. Em Osaka, os 18 países-membros da Apec (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) reafirmaram o objetivo de alcançar uma zona sem barreiras ao comércio e ao investimento até o ano 2020.
Pouco antes, na Espanha, representantes de peso do setor empresarial norte-americano e europeu retomaram com entusiasmo a idéia de construir uma zona de livre comércio transatlântica entre América do Norte e União Européia.
É difícil negar uma certa contradição entre o reforço do sistema multilateral, com a criação da OMC, de um lado, e igual reforço, do outro, do regionalismo, encarado muitas vezes como rival e substituto do primeiro.
De fato, qualquer país deveria, em tese, negociar de preferência em bases multilaterais do que em termos bilaterais ou regionais.
A razão é simples. Se o Brasil, por exemplo, negocia apenas com a Argentina, Paraguai e Uruguai, seus parceiros no Mercosul, ele ganha vantagens de acesso somente aos mercados limitados desses três países.
Em contraste, se a negociação fosse no Gatt de outrora ou na OMC de hoje, qualquer concessão obtida por um país junto a outro se estenderia automaticamente a todos os demais, por força da chamada cláusula da nação mais favorecida ou NMF. Ganha-se, dessa forma, acesso a todos os mercados e não apenas a alguns.
Como explicar, então, que os acordos regionais tenham atraído tanta atenção mesmo em meio à mais ambiciosa das negociações multilaterais da história?
Simplificando um pouco, pode-se dizer que o favorecimento ao regionalismo aumentava toda vez que a Rodada Uruguai parecia fadada ao fracasso.
Nesses momentos de frustração, que foram frequentes, alguns como o ex-secretário do Tesouro e, mais tarde, do Estado James Baker defendiam a idéia de prosseguir a negociação no seio de um grupo menor, de países similares, uma espécie de "clube de liberalização comercial".
Tudo indicava, porém, que o êxito da rodada desestimularia esse tipo de abordagem, até porque as reduções de tarifas alcançadas reduziam o escopo para a concessão de margens de preferência somente a alguns parceiros.
Não é isso, porém, o que se está vendo na prática. Embora as explicações sejam muitas, duas se destacam pela importância; a mudança de posição dos EUA e o caráter político e histórico de algumas das motivações do regionalismo.
Por muito tempo, os norte-americanos foram os campeões intransigentes do sistema multilateral e os adversários inflexíveis dos esquemas preferenciais. Foram eles que combateram, na década de 30, os chamados acordos de "marcos de compensação" celebrados pela Alemanha nazista com vários países, dentre os quais o Brasil.
Após o tratado de Roma, que criou o Mercado Comum Europeu, Washington rejeitou liminarmente a idéia avançada por alguns latino-americanos, segundo a qual se deveria, como resposta, criar uma zona de livre comércio no hemisfério ocidental. Não deixa de ser irônico que sejam agora os americanos a tentar ressuscitar a proposta de uma área integrada "do Alasca à Patagônia".
Sem o papel hegemônico dos EUA no fim da Segunda Guerra, o Gatt nunca teria visto a luz nem sobreviveria.
Ora, hoje, os americanos, sem terem perdido a fé no sistema multilateral, que ainda preferem aos demais métodos, já não mais o consideram como o único caminho exclusivo para promover o livre comércio e abrir mercados.
Dependendo das circunstâncias, os EUA estão dispostos a aceitar pragmaticamente outras abordagens, como a regional, consagrada nos acordos com Canadá, o México e agora com a Apec.
Outra explicação da persistência do regionalismo é que, longe de ser moda recente ou passageira, a integração regional é uma das características definidoras do período pós-Segunda Guerra Mundial.
Basta lembrar, assim, que, entre 1947 e 1994, haviam sido notificados ao Gatt nada menos de 109 acordos, dos quais 11 entre países em desenvolvimento.
O fenômeno tem sido particularmente intenso na Europa Ocidental, onde a motivação estratégico-ideológica original foi claramente a de fortalecer econômica e politicamente os europeus como defesa à ameaça do expansionismo soviético, tal como percebida no auge da Guerra Fria. Dos 109 acordos até hoje notificados, os europeus ocidentais são partes em 76. A tendência se acelerou, desde a queda do Muro de Berlim, em relação aos países da Europa Central e Oriental, que respondem por 24 dos 33 acordos notificados nos últimos cinco anos.
Os exemplos onde a integração econômica mais avançou coincidem com as situações de forte conteúdo político: União Européia, Nafta e Mercosul.
No caso europeu, sempre foi nítido, desde o início, que o objetivo final era chegar a uma política comum em matéria de defesa e de relações exteriores. Embora a unidade política continue a representar um desafio aos particularismos nacionais em termos de visão e de interesses, aos poucos vai-se criando a consciência de um patriotismo europeu, acima e além das rivalidades e inimizades entre os países.
Conforme disse um escritor francês, a idéia dos Estados Unidos da Europa pode parecer um mito, mas é um "mito criador", uma idéia-força que impulsiona as vontades e as faz superar os obstáculos econômicos.

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