São Paulo, sábado, 25 de novembro de 1995
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Acácio e o corvo

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - O homem é a sua linguagem. A frase parece profunda, e vai ver que é. Não é minha. É até um lugar-comum. Não sou o primeiro nem o único, mas acho que fui um dos mais insistentes em acusar o presidente da República de acacianismo. Não sei como, aí em São Paulo, ao tempo em que ele era um fenômeno local, não se detectou a tendência de FHC ao banal, à frase feita, ao pensamento óbvio. Numa palavra: ao Acácio puro.
Agora mesmo, atolado pelos petardos que começam a estourar em suas proximidades (o núcleo da possível corrupção estaria no mesmo andar do palácio presidencial), FHC deu aquela de citar o corvo, lugar-comum das academias regionais de letras. E usou a palavra "malsã", que ainda faz muito sucesso em ordens do dia dos chefes militares ("repeliremos com denodo e entranhado amor à pátria as tentativas malsãs que tentam solapar a nacionalidade") e as citadas academias estaduais de letras.
Não se exige dos presidentes da República maior intimidade com os mistérios e deveres da linguagem. Cobrar de Costa e Silva e de Médici uma informação mínima sobre o assunto seria maldade e desperdício. Mas FHC se considera um intelectual, e seus arautos o classificam de sábio. Evidente que, tal como é e está, ele dá para o gasto.
Sabe que existe um poema dedicado ao corvo, mas não me parece que tenha se referido a Poe. Incomodado com o embrião de escândalo aberto em sua cidadela, ele acusa a imprensa e os políticos que não lhe dizem amém de se fartarem na carniça, como corvos. Outro lugar-comum e outro exercício explícito daquilo que os acadêmicos municipais e estaduais chamariam de "jus esperneandi". O direito de espernear.
Uma coisa parece clara: pouco a pouco, o governo de FHC está ficando muito parecido com o de Collor. Tem o lado positivo (não poderemos negar ao ex-presidente a abertura da cabeça do Estado brasileiro para o mundo) e tem o seu lado de sombra, de carniça mesmo. É uma lástima que isso aconteça outra vez. É pior do que lástima: é uma crueldade suplementar que o Brasil talvez não mereça.

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