São Paulo, terça-feira, 19 de dezembro de 1995 |
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Ninguém luta contra o absurdo urbano
ARNALDO JABOR
Em São Paulo, o absurdo é mais organizado que no Rio. No Rio, a paisagem nos dá um distanciamento do artificial, permitindo um resto de visão crítica. Em São Paulo, onde tudo é construído, o avesso do avesso fica menos visível, e ninguém se espanta com o grande anúncio de cuecas de cem metros de altura ou com a publicidade do frangão com coxão e peitão na parede dos arranha-céus. No Rio, a feiúra da cidade está perto da beleza. Em São Paulo, não há mais estética. Ninguém lembra mais o que era a natureza. O feio transpira um poderio que fascina. No Rio, estamos diante de uma saudade. Em São Paulo, diante de um fato consumado. Estas idéias me vieram quando entrei na exposição "Arquitetura e Humor", feita pelos arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan. Eles fizeram 14 maquetes de projetos que são a aguda paródia do caos urbano de São Paulo. Uma intenção humorística virou um forte manifesto contra a ausência de uma política urbana. Catorze metáforas do insolúvel geral das cidades brasileiras e da desgraça pós-moderna. Não há uma associação séria de urbanistas que tenham uma proposta militante para ajudar a salvar São Paulo. Nem no Rio. Vejamos alguns projetos de Isay e Marcio: 1 - O Esgotão - A vantagem deste Projeto é que torna desnecessário limpar o rio Tietê. Já que este rio é um esgoto a céu aberto, vamos assumi-lo e transformá-lo num esgoto encanado. O projeto visa a construção de uma gigantesca tubulação com livre navegação interna. A implantação pretende a perfeita integração estética com a arquitetura da cidade. Tem a vantagem de esconder a sujeira do rio e fazer invisível a paisagem ribeirinha. 2 - Edifício Guarita - Este projeto vem preencher uma lacuna no mercado imobiliário. O Edifício Guarita foi projetado para abrigar seguranças, guardas e porteiros. Com 738 unidades residenciais em 14 pavimentos, possui entre outros confortos, um passa-pizzas em cada apartamento, vidros à prova de bala e sistema fechado de TV que mostra sempre corredores, halls e elevadores em preto e branco. O porteiro é eletrônico. 3 - Casa de detenção e detenção em casa - Com seus enormes muros e grades eletrificadas, a Casa de Detenção tem influenciado gerações de arquitetos, cujos projetos de mansões estão espalhadas por toda a cidade. A Detenção foi concebida para não se sair, a outra para não se entrar. É só trocar o camburão pela limusine, o pastor alemão pelo "poodle branco e o motim pela fidelidade dos serviçais. 4 - Lixovias - As lixovias nada mais são que enormes cestos de lixo contínuos, implantados paralelamente às vias de circulação de veículos. Atualmente os habitantes costumam jogar lixo através da janela dos automóveis. Com o advento da lixovia, este lixo terá um destino certo: o próprio cesto de lixo. Com isto, transforma-se o gesto de jogar lixo no chão em ato civilizado e moderno. 5 - Esteira ambulante - Atendendo a uma antiga reivindicação dos vendedores ambulantes, pedintes, hare krishnas, assaltantes e prostitutas, este é um projeto de cunho social, que visa a proporcionar conforto aos trabalhadores que infestam nossos cruzamentos e que são obrigados a percorrer a pé o espaço entre os carros. Com as esteiras ambulantes, estes indivíduos poderão deslizar pelas calçadas rolantes, oferecendo seus produtos, com aumento da eficácia produtiva e grande impacto no PIB do país. 6 - Aerocasa - Inspirado nos maiores aeroportos do mundo, este edifício oferece um sistema de segurança total. Ao chegar a este condomínio, estacione junto ao portão de desembarque privativo, desafivele o cinto de segurança e através de um túnel você terá acesso direto a seu apartamento. Assim, evita-se qualquer contato com o mundo exterior, dificultando ao máximo assaltos, estupros e guardadores de automóveis. Oferece suítes cinematográficas e a famosa Sala Vip, para recepcionar suas visitas em trânsito. 7 - Bateaux mouches blindados - Com a finalidade de proteger os sensíveis olhos da população, as pessoas entram nestes barcos blindados, os barcos andam, mas impedem que as pessoas vejam a estupenda paisagem das bordas. A vantagem é o custo baixo, pois também elimina a necessidade de se urbanizar as favelas e sujeiras que bordejam o Tietê, pois ninguém vê nada. 8 - Via expressa - Outra proposta que evita a limpeza do rio Tietê. Basta cobri-lo com uma laje totalmente asfaltada. O tráfego seria em pistas de alta velocidade em barcos, lanchas e jet-skis sobre rodas. Existem outros projetos. Há um anel viário sobre a área "inútil" do parque Ibirapuera; há prédios em forma de "escargots", construídos com a supervisão de cozinheiros franceses; há praças com árvores patrocinadas por firmas de fast food; há esteiras rolantes entre favelas. Ao ver tudo isto me lembrei do Rio e das sugestões de Brizola para acabar com os "arrastões" de marginais em Ipanema: construir piscininhas na Baixada e fazer teleféricos para os morros altos. Aliás, em nome da cultura internacional, o Cesar Maia podia convidar o Christo, o escultor americano que embrulha tudo, para cobrir de nylon colorido as favelas cariocas. Texto Anterior: Livro traz a arte instigante de Weston Próximo Texto: México exibe Paul Gauguin 'sintetista' Índice |
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