São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 1995
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O mito do 'social dumping'

DURVAL DE NORONHA GOYOS JR.

Com a globalização das economias, resultante da liberalização do comercio mundial -promovida pelas reduções tarifárias- e da normatização patrocinadas pela Organização Mundial do Comércio, determinadas vantagens comparativas dos países em desenvolvimento (dentre os quais o Brasil se coloca) em relação aos desenvolvidos tornaram-se manifestas.
Tais vantagens, no passado, eram neutralizadas, e ainda são em muitos casos, por práticas desleais de comércio, como os subsídios e o arbítrio praticados pelas principais potências econômicas, capitaneadas pelos Estados Unidos e pela União Européia (UE).
Ameaçados em sua hegemonia comercial pela valorização do direito internacional resultante da Rodada Uruguai do Gatt, encerrada em 1994 e que culminou com a criação da OMC, os EUA e a UE, grandes campeões da retórica do jogo do livre comércio -desde que praticado com cartas marcadas- reagem com um renascente movimento protecionista e, para justificá-lo, desfraldam despudoradamente a desgastada bandeira do "dumping social", resgatada com nome novo do baú dos pensamentos coloniais.
Chama-se de "dumping social" a vantagem comparativa e relativa dos países em desenvolvimento sobre os países desenvolvidos em termos de trocas internacionais, pelo custo mais barato de mão-de-obra nos primeiros.
Tal custo mais baixo é decorrente da própria situação do estágio de desenvolvimento e, muitas vezes, da miséria que aflige boa parte do globo. Mais ainda: esse custo de produção mais baixo levaria à transferência de algumas indústrias com intensividade de mão-de-obra para os países em desenvolvimento.
Essa possibilidade traz enorme angústia e desespero àqueles chauvinistas que acreditam poder o mundo admitir uma concentração de prosperidade apenas em alguns países enquanto persiste a miséria de muitos outros. Isso, em síntese, é a idéia central do colonialismo.
A expressão "dumping" não foi utilizada aleatoriamente, porque o objetivo desses chauvinistas é caracterizar salário mais baixo como ilegal face ao ordenamento jurídico internacional, de tal forma a poderem institucionalizar os subsídios que praticam presentemente.
De fato, não se pode pretender que os níveis baixíssimos de salários praticados na maior parte dos países em desenvolvimento sejam justos; mas são uma consequência natural das primeiras oportunidades e, pela própria dinâmica dos mercados, tendem a aumentar com uma maior atividade econômica.
Daí a chamá-los de ilegais vai uma diferença enorme. De mais a mais, o trabalhador dos países desenvolvidos, pelo maior nível de educação e treinamento decorrente de maiores oportunidades históricas, tem um nível de produtividade frequentemente superior, a ponto de equalizar o menor custo do trabalhador do país em desenvolvimento.
A tendência de equalização não vale apenas para o trabalho altamente especializado. Na agricultura, por exemplo, um trabalhador holandês produz anualmente o equivalente a US$ 48,8 mil dólares, contra US$ 2.700 de um trabalhador brasileiro, segundo pesquisa recente do World Economic Forum. Não obstante, o mesmo trabalhador holandês, como seus colegas da UE, recebe ainda subsídios anuais da ordem de US$ 15.400, enquanto o trabalhador brasileiro vive situação falimentar!
Tudo isso não impede o pobre trabalhador dos países em desenvolvimento de ser acusado de comércio desleal e responsável pelas agruras do agricultor e do eleitor norte-americano e europeu.
Entre os defensores do "dumping social" situa-se o radical James Goldsmith, cujo livro "The Trap", no qual tal conceito é esposado com fervor, tornou-se sucesso editorial na França, país presentemente fértil para infelizes iniciativas do gênero.
No centro dessas idéias está o objetivo de criar uma ou mais fortalezas regionais estanques -como a UE, por exemplo- protegidas da competição internacional, por barreiras comerciais diversas, e da imigração de miseráveis, pelas Forças Armadas.
Mesmo com a evolução do pensamento social nos últimos dois séculos e com a clara demonstração dos benefícios do livre comércio à humanidade, evidenciada pelos progressos havidos desde a assinatura do Gatt, em 1947, essas idéias encontram defensores em todo o Primeiro Mundo.
Não que elas sejam originais, expressem corretamente uma situação econômica ou legal ou, menos ainda, que sejam presentemente majoritárias.
Há mais de cem anos, em 1892, o líder do Partido Republicano, McKinley, dizia nos EUA que o país não poderia prosperar com um sistema que não reconhecesse as diferenças de condições nos EUA e na Europa. A competição aberta entre o trabalho altamente remunerado nos EUA e mal remunerado na Europa eliminaria do mercado os trabalhadores americanos ou diminuiria seus salários, ambas situações indesejáveis.
Cem anos de história demonstraram, de forma inequívoca, que os radicais de então estavam errados. O vulto dos interesses envolvidos é tão grande que a verdade histórica não é suficiente para calar os radicais de hoje.
Da prevalência ou não do conceito legal de "social dumping" na ordem jurídica internacional dependerá a competitividade internacional dos países em desenvolvimento no futuro.
A vingar o conceito, o Brasil estará automaticamente alijado dos mercados internacionais. Tendo em vista a importância da questão, é tanto pior quando esse discurso reacionário encontra eco em certos setores empresariais e governamentais brasileiros.

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