São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lógica cruel

LUIZ CAVERSAN

RIO DE JANEIRO - Os motoristas de táxi do Rio são o cartão de visita mais eloquente e realista da cidade. Podem, por um lado, aterrorizar qualquer turista ou cidadão comum com malandragens para aumentar o valor da corrida. Mas também conseguem, na maioria das vezes, desempenhar perfeitamente o papel de relações-públicas em defesa dessa conturbada urbe.
Outro dia, percorrendo a orla num fim de tarde maravilhoso, comentei com o chofer o privilégio que era desfrutar daquele cenário.
Disse, porém, que nunca conseguiria conviver com a idéia de ter como contraste a tanta exuberância momentos de pura selvageria, como o do ataque aos torcedores do Santos, semana passada.
Dentro de sua lógica primitiva, mas extremamente pragmática, o motorista saiu em defesa de seus concidadãos. Em resumo, eis o que ele disse:
"Doutor, veja o incidente do ponto de vista do dono da boca-de-fumo. De repente, chegam dois carros cheios de caras desconhecidos, de farol alto e em velocidade. Não deu outra: o pessoal só podia pensar que era polícia ou bando rival querendo tomar o controle do pedaço. O que eles estariam fazendo ali a não ser isso? Se o sr. fosse o dono da boca não faria a mesma coisa? Foi pura falta de sorte dos rapazes..."
Entre chocado e revoltado com tamanha desfaçatez, fui obrigado a calar para não polemizar com o motorista.
Do ponto de vista de quem tem de conviver com as muitas cidades que se incluem dentro do Rio, o taxista estava na dele. Afinal, aprendi, não se mete na boca alheia impunemente.
Jamais passaria pela cabeça daquele cidadão que na verdade estava tudo errado e que a simples existência de um ponto de venda de drogas numa favela já era um absurdo; que garotos não devem sair armados matando gente por aí, que as pessoas, sejam quais forem, seja em que cidade for, têm o direito de errar o caminho.
Mas não falei nada. Fiquei quieto dentro da minha inquietação.
Inquietação que tornou-se ainda maior ontem, quando o incidente com o brasileiro em Miami veio demonstrar que o taxista do Rio estava definitivamente certo.
O brasileiro errou o caminho lá no balneário americano e levou bala.
A lógica cruel é essa mesma: marcou, dançou. Aqui ou na terra do Pato Donald.

Texto Anterior: Dupla ameaça
Próximo Texto: Mudar em 96?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.