São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 1995
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A privatização da família

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA

O Direito de Família depara-se hoje, na contemporaneidade, com duas grandes questões: o limite do público e do privado: e o confronto da objetividade e subjetividade nas questões que se nos apresentam.
Qual é a linha que separa, ou determina, a intervenção do Estado nas questões de foro mais íntimo das pessoas? Até que ponto o Estado deve intervir nas relações familiais? É de se questionar, por exemplo, se o Estado teria o direito de impedir que uma pessoa se separe de outra se esta não apresentar um dos motivos elencados pela lei, como o adultério, dever de coabitação, etc. A Lei 8.560/92 estabelece que o Estado deverá promover investigação da paternidade de todas as crianças registradas sem o nome do pai: não estaria havendo um excesso de interferência na vida privada?
Uma grande derrocada dos sistemas jurídicos contemporâneos é a eliminação do elemento culpa. Na Alemanha isto já não faz questão. Na Inglaterra, é o assunto do momento. Aqui, precisamos ainda achar um culpado e um inocente. Quem deu culpa à separação não pode receber alimentos etc etc.
E é exatamente por ainda procurarmos um culpado pelo fracasso de nossa relação, que nos impedimos de pensar as outras possibilidades da vida e que não estão exatamente no campo da objetividade.
O Direito de Família não pode mais ignorar que a subjetividade permeia praticamente todas as suas questões e com as quais lidamos no dia-a-dia. Ora, não podemos continuar nos enganando e ignorando o discurso inconsciente.
As relações de família não podem continuar sendo tratadas pelos sistemas jurídicos como se elas fossem determinadas apenas pelo mundo da objetividade. Na realidade, o que transparece através do ato (jurídico) é a emersão de um desejo que é anterior (e posterior) a ele.
Por que é que um casamento acaba? Porque apareceu um terceiro na relação, ou ele apareceu porque já havia acabado.
Será que o Estado pode intervir nestas questões e considerar o fato apenas objetivamente? Mas, a grande questão que fica e começa a emergir é: como o Direito poderá trazer para si a subjetividade e considerar o inconsciente? Deveríamos considerá-las juntamente com os elementos objetivos, do raciocínio cartesiano e que se constrói o raciocínio jurídico.
Quando um cliente nos fala, ele fala a sua história, que é sempre diferente e diversa da história da outra parte. Ele acredita estar com a verdade. Verdade ou não, é a sua versão, pois a outra parte também acredita estar dizendo a verdade.
Qual seria a postura ética do advogado? Tomar a verdade do cliente como verdadeira, ou buscar a verdadeira verdade.
Em Direito tomamos como verdadeiros, aqueles fatos que restaram formalmente provados no processo judicial. É a verdade formal. Mas como fazer com aqueles fatos que são impossíveis de serem provados, como por exemplo, o não-afeto, o desamor em uma relação ao longo do tempo? Não podemos simplesmente desconsiderá-los.
Uma coisa é certa, o Direito de Família não pode fechar os olhos a esta realidade que insistirá sempre em emergir, no discurso, já que o inconsciente é estruturado como linguagem, como já objetivamente demonstrou Lacan. Compreender isto é fazer cumprir o Direito mais autêntico, é dar vida ao Direito e colocá-lo na vida.

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