São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 1995
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Laura Rónai e Fagerlande fogem do didatismo

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ornamentos, ligaduras, ataques, acentos, cadências: por muito tempo foi só do que se falou na música antiga. Hoje em dia, com a performance autêntica mais que estabelecida nos conservatórios e salas de concerto, podemos deixar as notas de rodapé dos artigos de musicologia e retornar, menos programaticamente, à música.
A esta altura, além do mais, todo mundo concorda que a interpretação desse repertório -basicamente, da Idade Média ao Barroco- é menos "autêntica do que contemporânea: uma forma de reinventar as obras do passado.
Recém-lançado em edição independente, o CD de Laura Rónai e Marcelo Fagerlande dá um exemplo maduro do que se pode fazer nesta área. É um disco que foge não só dos preciosismos, mas também do didatismo, outra chaga de artistas-musicólogos.
Nem todo recital precisa ter um "tema e nem todo concerto é uma aula. Com a serenidade incomum de quem tem mais interesse na música do que em si mesmo, o duo carioca reúne aqui duas sonatas de Bach pai e Bach filho, uma suíte do compositor barroco francês Hotteterre e outra sonata, já quase clássica, do malconhecido François Devienne.
Em 1994, Marcelo Fagerlande lançou a segunda tiragem de um CD de música portuguesa e brasileira do século 18 para cravo, um dos melhores -se não o melhor- discos de música antiga já produzidos no Brasil. Com o sentido mais fino de linha e de ritmo, Fagerlande é também um grande músico de câmara, o que fica claro para quem escutar seu trabalho com Laura Rónai.
Portamentos (notas que deslizam continuamente até outra), microvariações de intensidade em cada altura e controle delicado do ataque fazem a felicidade ou o desespero dos flautistas barrocos. Laura passa por tudo com a desenvoltura natural de quem fala essa música como uma primeira língua.
Tocando juntos, a flauta e o cravo ressaltam diferenças de articulação e timbre sem as quais o contraponto fica ainda mais difícil de seguir. É essa, talvez, a principal virtude da interpretação com instrumentos antigos e técnica restaurada: a música não fica só mais sedutora, também faz mais sentido.
O ponto alto do disco é a Sonata em lá maior de J.S. Bach, com o primeiro movimento reconstituído. Carl Philip, de sua parte, é sempre um prazer de ouvir, mas a Sonata em ré maior não chega às vastidões e intimidades das peças para cravo solo.
Em seus concertos dos últimos anos, o duo carioca vem tocando Hotteterre e Devienne com alguma frequência. O primeiro é um compositor de flautistas, virtuosístico e idiomático, mais que imaginativo. Já a Sonata de Devienne, em dois longos movimentos, tem outras ambições. Para nós, hoje, faz pouco mais do que ilustrar a dificuldade de chegar, em pleno século 18, ao que em retrospecto é o modelo clássico da sonata. Tem seus fogos de artifício, mas são mais artifícios que fogos.
Nos recitais como no CD, Laura Rónai e Marcelo Fagerlande só pecam, então, a meu ver, por uma certa frivolidade do repertório. A leveza pesa. Mas seria injusto criticar um trabalho tão bem-feito e tão acima do nível médio brasileiro, por fazer um esforço para se aproximar da platéia. O disco é excelente, e uma resposta, em alto estilo, às pobrezas da música de concerto no Brasil.

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