São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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Drogas - Imunidade do usuário

MARCO AURÉLIO COSTA; MOREIRA DE OLIVEIRA

A posição do ilustre ministro da Justiça, Nelson Jobim, favorável, em princípio, a "descriminar o consumo de drogas", está alcançando ampla repercussão nos meios jurídicos do país.
Na matéria jornalística que divulga essa inclinação, tacha-se de "absurdo" o tratamento dado pela legislação vigente a traficantes e consumidores, "como se ambos fossem igualmente criminosos". Correta essa interpretação, a legislação vigente deveria ser imediatamente modificada, por representar uma filosofia bárbara, destituída de inspiração humanista.
No entanto, nossa ordem jurídica não estabelece, como pode parecer, um tratamento idêntico para traficantes, usuários e viciados. Ao contrário, trata diferentemente os desiguais.
Note-se que para os traficantes é cominada pena reclusiva de três a 15 anos. À mesma punição ficam sujeitos os profissionais da saúde que, dolosamente, prescreverem substância entorpecente.
Por sua vez, aos usuários (não viciados) cominam-se penas marcadamente inferiores: quem adquire, guarda, ou traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente, é passível de detenção de seis meses a dois anos, compatível com a concessão de "sursis".
Basta essa distinção, para demonstrar a diferença de tratamento entre o usuário e aquele que vive da mercancia de drogas.
A legislação preocupa-se, ainda, com a especial situação do usuário viciado, aquele que apresenta elevado grau de dependência. Este fica no art. 19 da Lei 6.368/76. E, além da imunidade, deverá ser tratado pelas "redes de serviços de saúde dos Estados, Território e Distrito Federal", bem como "submetido a regimes de internação ou ambulatorial em estabelecimentos" de saúde (arts. 8º a 11º da lei).
Assim, a legislação, além de isentar de pena o viciado, exige que os entes estatais mantenham um sistema necessário a tratá-lo, solução terapêutica até hoje descurada pelo governo.
Logo, é importante questionar-se o que é realmente um viciado, um usuário ou um pequeno traficante.
Diante do problema, o judiciário absolve os viciados (art. 19) e, em situações dúbias, aplica leves condenações com "sursis" a usuários não viciados, ainda que tais usuários possam parecer pequenos repassadores. Através dessas condenações menos amargas e compatíveis com a suspensão da pena, está-se induzindo reincidência, para futura imposição de sanção carcerária.
Assim como o Ministério Público francês, elogiado em reportagem da Folha, nossos promotores têm sido prudentes ao denunciar, deixando indenes fatos que não se revistam de lesividade social.
Todavia, caso modificada a lei, se o usuário não mais for punível, a dúvida levará o pequeno traficante, verdadeira "longa manus" dos potentados do tráfico, a uma absolvição danosa para a sociedade. O Judiciário, nos casos fronteiriços, não mais desclassificará o crime para outro menos grave, capaz de admoestar tanto o usuário como o "repassador".
Não basta que se tenha o poder de apreender a droga. É necessário que se possa deter e interrogar quem a repassa, a fim de identificar o traficante.
Algo, no entanto, sobrepaira a tudo o que se disse: ao se legislar sobre matéria penal há de se agir com extrema cautela, pois, se o radical endurecimento das normas incriminadoras leva o poderoso Estado a um execrável autoritarismo, o afrouxamento da legislação penal pode trazer graves consequências sociais, políticas, econômicas e até mesmo institucionais.
Daí a necessidade de se manter a norma que pune o usuário não viciado ou do pequeno repassador, dispositivo destinado a funcionar como verdadeiro soldado de reserva da ordem jurídica.

Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira, promotor de Justiça, é juiz de Alçada, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, presidente do Tribunal Regional Eleitoral-RS, advogado, professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro da Comissão Revisora do Código de Processo Penal, constituída pelo Ministério da Justiça e Escola Nacional da Magistratura e sócio-membro da Association Internationale de Droit Pénal.

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