São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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É o roto que empresta ao molambento

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma característica interessante do atual governo federal é a de que alguns dos seus componentes, na juventude, foram seduzidos pela concepção de que a revolução social seria a solução milagrosa para os males e mazelas do país.
Agora, estão convertidos às teses reformistas, não da social-democracia, mas, tudo indica, do chamado neoliberalismo.
Possivelmente, o esfacelamento da União Soviética, a anterior queda do muro de Berlim e a decantada falência do socialismo tenham acarretado, junto com exercício do poder compartilhado com os conservadores, a tomada de consciência de que não vale a pena brigar mais, uma vez atingido o poder, pelos ideais programáticos de seus partidos e suas biografias.
Entre o programático e o pragmático, a opção é pelo utilitarismo do último, pois em matéria de estabilidade e manutenção do poder, pensam, não se deve brincar.
Na minha juventude, na década de 50 e no início da de 60, a militância estudantil e operária estava sempre a exorcizar o FMI. Novos tempos, novas formas de atuação.
Alguns desses militantes, inclusive participantes da luta armada contra a ditadura, converteram-se a outro credo, adotando a cartilha e receituário do FMI, para o combate à inflação e para a estabilização da moeda.
Mesmo diante da crise mexicana, esqueceram-se da catarse da autocrítica e persistem na aplicação do modelo pregado pelo FMI. E têm-se revelado nessa prática teleguiada mais realistas do que o rei.
Noticia-se, por exemplo, que diante das resistências do Congresso americano em atender à proposta do presidente Clinton de emprestar US$ 40 bilhões ao México, foi solicitado ao Brasil o auxílio financeiro e político, para romper o impasse.
Assim, as altas esferas do governo federal prontamente se dispuseram a fornecer US$ 300 milhões ao México, na liderança de uma caixinha (melhor dizer caixão, pelo fúnebre da coisa), com a participação de outros países da América Latina, alguns dos quais há muito tempo perderam o poder nacional.
Os juristas oficiais de plantão (advogados de partido) rapidamente já encontraram a fórmula para evitar a interveniência, necessária, pois constitucional, do Senado Federal na concessão desse empréstimo.
Não mais se trata de empréstimo, mas de aplicação das reservas brasileiras depositadas no exterior. Advogado de partido é assim. Basta a direção dizer o que quer, que a fórmula jurídica surge rápido, mesmo em agressão ao senso jurídico.
Esse empréstimo feito pelo roto ao molambento pode causar perplexidade a alguns observadores, pelo seu baixo custo de oportunidade, se considerados os interesses do povo brasileiro, com tantos deserdados e marginais na sua população a merecerem a atenção e o gasto governamental.
Observação mais atenta, se examinado o que tem ocorrido neste mês inaugural de gestão do governo federal, verificará que o processo corrente, pela sua dinâmica, indica que o natural e consequente é o fornecimento do empréstimo ao México, para minorar as perdas dos aplicadores financeiros americanos.
Veja-se o que tem sido feito ou proposto: possível veto ao salário mínimo de R$ 100; substituição do concurso público, como forma única de provimento para os cargos públicos, dando margem a apadrinhamentos e clientelismos; reajuste dificultoso e irrisório de pouco mais de 20% para os vencimentos dos funcionários públicos federais; aumento de cerca de 150% aos vencimentos do presidente da República, vice-presidente, ministros de Estado e parlamentares; concessão de anistia vergonhosa para o presidente do Congresso; restauração das mordomias dos carros oficiais; eleição dos servidores públicos e dos trabalhadores do país, como bodes expiatórios dos males da Constituição, ao se acusar que as garantias constitucionais a eles outorgadas não são conquistas sociais históricas, mas benesses decorrentes do nefando corporativismo; ênfase em acentuar a globalização e internacionalização da economia; desproteção às indústrias nacionais, com o perfilhamento da política de incentivo às importações.
Dada a lógica desse processo instaurado, não constitui surpresa, mas consequência natural, que o governo federal fique bonzinho e colabore com o capitalismo americano para amenizar as suas perdas ocorridas no México, embora o compromisso da campanha presidencial fosse considerar prioritário o social.
Transborda de razão o deputado Delfim Neto ao criticar, com lucidez, tal empréstimo, estranhando a presteza e solicitude do governo brasileiro em realizá-lo, quando países mais bem dotados em matéria de reservas externas, como o Japão, fazem-se de mortos diante da crise, omitindo-se de prestar colaboração para a sua solução.
A celebrada internacionalização e globalização da economia, em realidade, tem conduzido a uma maior integração da economia mundial, mas tem acarretado uma nova fase de dependência dos países periféricos, como o Brasil.
Essa dependência tem contado com a adesão ou complacência de uma parte da elite tecnocrática do país, que apresenta suas aspirações burocráticas e de carreira direcionadas para participar dos escalões superiores dos organismos financeiros internacionais, assimilando com grande facilidade suas orientações, receitas e ideologias. Não mais se trata do colonialismo, mas uma nova postura em que a lógica da dependência surge como algo natural.
O país tem mudado tanto que um macróbio, anteriormente considerado como entreguista, defensor eterno dos interesses estrangeiros, tem cantado de galo, por estar contemporâneo da materialização de suas profecias de mais de 40 anos.
Como Moisés, postula ser o condutor do país, no atalho de sua salvação, por adoção do modelo desnacionalizante que ele preconiza, na ótica da complementariedade servil do Brasil no plano internacional.
É certo que o processo de internacionalização é inevitável, até mesmo desejável. No entanto, é necessário que o governo brasileiro se guie pelas necessidades e interesses da população brasileira.
Sem dúvida alguma, a maior preocupação de qualquer dirigente comprometido com a nação brasileira deve ser a enorme dívida social do país e não o favorecimento aos lucros do capital internacional apátrida.
Parece-me atual a advertência bíblica: "Diz-me com quem andas e eu te direi quem és". Seria ótimo que o governo federal procurasse manter a seu lado o povo brasileiro, que o elegeu, e se desvencilhasse dos que impedem a defesa dos legítimos interesses nacionais.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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