São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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Os obstáculos ao gradualismo das reformas

LUÍS NASSIF

Está-se há 12 dias do prazo dado pelo governo para apresentar ao Congresso sua proposta de revisão constitucional.
Depois do fracasso da revisão no ano passado, nossa geração tem sua grande e última oportunidade de legar ao país a passagem definitiva para a modernização —desafio no qual tantas gerações fracassaram, devido a uma lógica atroz.
Sempre que um sistema centralizador entra em crise, o vácuo é ocupado por grupos organizados, que disputam as migalhas do Estado como carcarás esfomeados.
Muitas bocas famintas geram desequilíbrios orçamentários, com inevitáveis desdobramentos inflacionários.

"Pacto hegemômico"
Segue-se fase de grandes radicalismos, de grandes abusos em relação à estrutura de Estado.
O caos gera a necessidade de reformas. Mas, no final do processo, as reformas são substituídas por um certo cansaço.
Reflui o clamor reformista, aceitam-se paliativos, ajustes que permitem reequilibrar o Orçamento e restringir o número de bocas autorizadas a sugar o Estado. Mas sem tocar fundamentalmente na estrutura de poder.
É o tal "pacto hegemônico" —esta idéia esdrúxula, autoritária e atrasada, defendida durante largo tempo por setores dito progressistas.

Terreno policiado
Nas modernas democracias, os pactos são feitos em torno dos direitos essenciais dos contribuintes, dos cidadãos e dos consumidores de serviços privados e públicos.
O jogo político se dá em cima de um território restrito e fortemente policiado pela cidadania.
Aqui os tais "pactos hegemônicos" visam exclusivamente recompor estruturas de dominação política sobre o Estado.
Entregam-se alguns anéis, promete-se alguma moderação com recursos públicos, contém-se um pouco a gula, para continuar a se manter o domínio político sobre o Estado.

Atravessar o Rubicão
No Império, o cansaço com a Revolução Praieira levou a um profundo acomodamento do organismo político. O regime perdeu todo o sentido reformista, para não colocar em risco a paz recém-conquistada.
Com a República sucedeu o mesmo. A esbórnia de Floriano Peixoto foi corrigida anos depois por um presidente austero —Campos Salles— que limitou-se a resolver a crise financeira do Estado.
Em nenhum momento decidiu-se romper definitivamente com estruturas de dominação, mesmo porque não havia ambiente político para tal.
Resolveu-se a crise o Estado e afastou-se a nação cada vez mais dos níveis mínimos exigidos por sociedades civilizadas.
Hoje há ambiente político. Existe uma imprensa atuante e definitivamente subordinada aos interesses da cidadania.

Dilema do presidente
Existe uma opinião pública que defende majoritariamente o corte modernizador. Só que é uma opinião pública amorfa, não-organizada, que precisa de alguém que verbalize suas ansiedades e utilize suas energias como alavanca para o grande processo de reforma do Estado.
Esse alguém é o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
O presidente vive, neste momento, ainda início de governo, seu dilema definitivo.
Não é pessoa de grandes apostas. Ao rompimento, acena com processos gradativos. Prefere conquistar pouco do que tentar tudo e nada conseguir.
Só que muitos dos colegas que pensa contar para essa caminhada gradativa representam o que de pior a política brasileira poderia oferecer.
O Senado está dominado por uma chusma de políticos da pior espécie.
Com raras exceções, os partidos políticos estão liderados por pessoas comprometidos até a raiz do cabelo com a tradição patrimonialista brasileira. São os Sarney, Iris, Barbalhos, ACMs, Gilberto Miranda. À esquerda, o PT e o sindicalismo começam a exercitar novamente o discurso corporativista.
Não há estratégia gradativa que resista a tantas minas colocadas no caminho das reformas.
O presidente vai precisar atravessar o Rubicão. Se não ousar, morre afogado em dois palmos de água.

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