São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 1995
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CONTRA O PENSAMENTO SISTEMÁTICO

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BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Originário da Martinica, Edouard Glissant fez os seus estudos superiores na Sobornne, na França. Já com os primeiros poemas passou a figurar na "Antologia da Poesia Nova" de Jean Paris. Desempenhou, nos anos 50, um papel de primeiro plano no renascimento cultural negro africano e colaborou sistematicamente na revista "Les Lettres Nouvelles". Com o primeiro romance, ganhou o prêmio "Renaudot", que lhe valeu a consagração literária.
Tendo fundado em 1959 a frente antilho-guaianesa, foi expulso de Guadelupe e passou a residir na França. Ao voltar para a Martinica, em 1965, fundou um estabelecimento de ensino, o Instituto Martiniquês de Estudos, e uma revista de ciências humanas, "Acoma". Desde então, sua obra não parou de crescer e, em 1991, ele recebeu o Grande Prêmio "Roger Caillois" de poesia da cidade de Reims.
Ele hoje integra o conselho diretor do Parlamento Internacional dos Escritores, onde faz ouvir que é preciso estar atento ao "grito do mundo" e que este precisa ser enriquecido com o imaginário dos povos, através de uma repetição infinita dos temas da mestiçagem, do multilinguismo e da crioulização.
Leia abaixo a entrevista que ele deu em Lisboa, durante reunião do Parlamento Internacional dos Escritores.
*
Folha - O que é a literatura para o sr.?
Edouard Glissant - A literatura é a possibilidade de exprimir o que é difícil, ambíguo, impossível. A literatura é sempre, aliás, uma procura de impossíveis. A situação do mundo cria novos campos para o exercício literário. Não se trata de fazer uma literatura aplicada, mas de ser sensível ao que se passa no mundo, detectar no que chamo de "caos-mundo" as variações e as invariantes.
Folha - Nós, brasileiros, como os antilhanos, não somos praticantes da escrita e sim da oralidade; não tendemos a ter leitores, mas ouvintes. O escritor brasileiro, como o escritor antilhano, contraria a tendência natural da própria cultura, pratica o seu ofício contra a corrente. A posição dele é particularmente difícil, e ele é, por definição, um combatente. O que justifica esse combate na sua opinião? Por que insistir na escrita?
Glissant - Se nós nos reportamos às civilizações antigas, damo-nos conta de que, no momento em que a escrita aparece, ocorre a passagem do oral para a escrita. Os textos do Antigo Testamento, por exemplo, foram primeiro ditos e só depois foram escritos.
Durante dois milênios, vivemos com a idéia de que o escrito é transcendente em relação ao oral. A civilização oral foi considerada inferior. Hoje, com a emergência das velhas culturas orais, na África, por exemplo, e, com o cinema e a televisão, nós deixamos de considerar que a oralidade é inferior.
Folha - Mas, nesse caso, o que justifica um antilhano, ou um brasileiro, escrever, contrariar a tendência natural da própria cultura, que é a oralidade?
Glissant - Se nós não fizermos a experiência da escrita, nós entramos na modernidade com algo a menos. Seria melhor mostrar que a escrita pode se tornar mais interessante com as técnicas da oralidade, que temos uma prática da escrita muito mais aberta para o oralidade, capaz de servir à expressão de nós mesmos. O melhor é tender para soluções de síntese e não de fechamento.
Quando eu escrevo na língua francesa, aplico a ela a economia da oralidade, do contador crioulo, tento construir algo que ultrapassa tudo que já foi feito, ultrapassa os próprios gêneros literários...
Folha - A sua posição resulta na produção de textos que não aceitam os limites dos gêneros e nem obedecem as regras estabelecidas para os diferentes gêneros literários. O mercado internacional tende a recusar esses textos e o escritor tende a desaparecer. O senhor poderia falar sobre isso?
Glissant - Não tenderá a desaparecer e sim a levar mais tempo para ser aceito. Foi isso que me aconteceu na França, onde consideravam que o meu texto era difícil por causa da oralidade. Mas pouco a pouco a coisa foi se impondo. O que eu digo hoje é muito ouvido nos meios intelectuais franceses e, há 20 anos atrás, não era. É preciso obstinar, não levar em conta as rejeições, que são sempre passageiras.
Folha - O senhor diz que o conceito hoje deve ser fecundado pela imaginação. Seria possível me explicar isso?
Glissant - No início das culturas ocidentais, o pensamento poético era fundamental. Na época dos pré-socráticos, não existia separação entre o homem e o mundo. Foi com Sócrates que houve a separação e o poético, que não separa o homem do mundo, se tornou secundário. Mas, em certas culturas africanas, nas culturas ameríndias, a separação não existe, assim como no movimento ecológico. O que diz a ecologia? Que se você estraga a terra, o ar, você faz o homem morrer.
Trata-se de uma volta ao poético, a uma forma de conhecimento que não é separável da palpitação do mundo, a um conceito fecundado pelo imaginário. Acho que a falência do pensamento do sistema, do marxismo, por exemplo, favorece um outro modo de pensar, que é mais frágil, porém é menos imperativo e menos tirânico.
Ao pensamento do sistema, que ignora o tempo, podemos opor um outro que implica na rememoração: o pensamento do traço, única possibilidade de sobrevida no Novo Mundo, para os descendentes dos africanos deportados. Não fosse o traço dos deuses, dos costumes e das línguas, este povo não teria tido como se perpetuar e, não fosse a reinvenção do traço, não poderia fazer o seu gênio se espraiar pelo planeta, com o jazz, as músicas do Caribe e das Américas.

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