São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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A epilepsia pode levar ao crime

GUIDO ARTURO PALOMBA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O problema de indivíduos epilépticos cometerem delitos, nas últimas duas décadas, vem sendo debatido por especialistas e leigos e talvez seja um dos temas de maior importância atualmente na psiquiatria forense, pois, além de envolver juízes, advogados, promotores e médicos, a questão estende-se à segurança social, tratamento e prevenção.
A discussão dos meios acadêmicos tornou-se mais acalorada, porquanto ultimamente vêm ocorrendo delitos gravíssimos, sobre os quais levantou-se para a opinião pública a possibilidade de terem partido de portadores de epilepsia.
Soma-se a isso a frequência do mal, que atinge de 1% a 2% da população mundial, de cujos números o Brasil não escapa, o que pode causar alguma preocupação a milhões de pessoas.
Psiquiatras e neurologistas, não afeitos aos misteres da criminologia, levantaram vozes, deram opiniões, havendo alguns que chegaram a dizer que epilepsia e crime não se misturam.
Para justificar, louvaram-se em autores americanos que não aceitam as evidências que ligam a epilepsia aos crimes violentos ( Psicopatologia em Epilepsia, Hermann e Whitman).
Essa idéia errada tem a sua origem na corrente radical que afirma que "epilepsia não é doença", a reboque da bem decadente antipsiquiatria que, nos idos dos décadas de 60 e 70, declarou, para surpresa do mundo científico sério, que "esquizofrenia não é doença" (Laing, Cooper, Szasz).
Se epilepsia não é doença não pode, obviamente, causar conduta criminosa, não pode haver relação entre ambos. Essa opinião não encontra respaldo em escolas e correntes neuropsiquiátricas vigentes no mundo contemporâneo.
É de consenso que o epiléptico, mormente na forma da epilepsia que se manifesta por distúrbios do comportamento, distúrbios de conduta (epilepsia condutopática, epilepsia temporal), pode entrar em estado de estreitamento de consciência e, nesse estado, praticar os mais cruéis delitos, cujos atos, às vezes bem ordenados, podem até ser premeditados, mas é uma premeditação mórbida, doentia.
Nós registramos, em vinte anos de psiquiatria forense, vários e vários casos de epilépticos do comportamento, em cujas crises epilépticas parciais complexas perpetraram os mais bárbaros homicídios, como aquele ocorrido no interior do Estado de São Paulo, em 1992, quando o doente criminoso embebedou três meninas de 5, 8 e 9 anos, e depois estuprou e matou; aquele, também do interior do Estado, 1993, que matava prostitutas com golpes de barra de ferro da trava de direção do carro; ou aqueles parricidas, e ainda aquele que pôs fogo na própria mãe etc.
Para a escola italiana, tais estados de consciência são perfeitamente possíveis: "Na epilepsia temporal, sobre uma aparente lucidez, que na verdade é um estado crepuscular, o sujeito pode praticar delito de crueldade, bestialidade inaudita, com uma premeditação minuciosa e relativamente longa, mas é apenas uma lucidez aparente ..." ( Trattato di Psichiatria Clinica e Forense, Carlo Ferrio, ed. Utet, p. 1928).
A escola inglesa também é clara: "A irritabilidade está provavelmente associada à epilepsia, na qual ocorrem violentas explosões de raiva com muito pouca perturbação da consciência. Frequentemente os pacientes entram em conflito com a sociedade, podendo ser presos por crimes de violência" (Mayer-Gross, Psiquiatria, ed. Mestre Jou, p. 146-147).
Esses crimes violentos muitas vezes suscitam polêmicas jurídicas, em face de suas características, mormente quando há premeditação e, depois do crime, conduta dissimuladora, com ocultação de cadáver, fuga do criminoso etc.
Pode parecer que foi praticado por pessoa mentalmente sã, mas a escola espanhola de Córdoba, prevendo essa possível confusão, disse com propriedade: "O ato impulsivo epiléptico é algo inconfundível para o médico experiente" (Ruyz Maya, Psiquiatria Civil e Penal, ed. Pluz, p. 696).
Em verdade todo o crime violento praticado por epiléptico tem alguns distintivos típicos, como: multiplicidade de golpes, ausência de motivos plausíveis, ferocidade na execução, ausência de premeditação, instantaneidade na ação, falta de remorso e amnésia ou reminiscências mnêmicas confusas. Podem faltar um ou mais, porém, sempre haverá, dentre esses sete característicos, no mínimo quatro.
Para a escola francesa, os atos de delinquência (homicídios, agressões sexuais, incêndios) podem estar relacionados aos estados epilépticos chamados de "automatismos mentais de longa duração" (Henri Ey, Manual de Psiquiatria, ed. Masson, p. 337).
O mesmo entendimento é visto nas escolas alemã (Wartemberg, Hoff etc.), brasileira (Vaz, Pacheco e Silva, Alves Garcia etc.), hispano-argentina (Mira y Lopes) e está perfeitamente amparado por estudos epidemiológicos realizados em várias partes do mundo, como, por exemplo, os da Nigéria (1981), elaborado por Odejide, que encontrou 18,9% de epilépticos entre os doentes mentais criminosos internados no Instituto Lantoro ( Acta Psychiatrica Scandinavia, 63-3, p. 208-224).
Hafner e Bõker (1982), estudando 533 presidiários na República Federal Alemã, observaram que 5,4% eram epilépticos ( Crimes of violence, by mentally abnormal offenders, Cambridge University Press).
Interessante notar que também nos Estados Unidos, exceto para a corrente antineurológica, epilepsia e crime violento estão associados, cuja anormalidade cerebral está ligada ao lobo temporal (Martell, em Law and Human Behavior, v. 16, n. 3, 1992, p. 313-336), e a própria Organização Mundial de Saúde, ao elaborar a sua última Classificação Mundial das Doenças, que entrará em vigor neste ano de 1995, reservou para a epilepsia que se manifesta por distúrbios de conduta um lugar próprio, o F07.0.
Em suma, dizer que não há evidências para ligar epilepsia a crimes violentos é apenas uma maneira de pensar radical, isolada, errada, que contraria, de maneira flagrante, a maioria absoluta do pensamento científico contemporâneo.
Por outro lado, é necessário estabelecer que, esse mesmo modo de pensar contemporâneo entende, de forma claríssima e pacífica, que a maioria absoluta dos epilépticos não é portadora de periculosidade social, da mesma forma que a maioria absoluta dos outros doentes mentais (esquizofrênicos, oligofrênicos etc.) também não é portadora de periculosidade.
Loucura existe sim, é um estado de exceção dentre os humanos; crime existe sim, é um estado de exceção dentro da sociedade. Louco criminoso existe sim, é a exceção dentro da exceção.

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