São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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Falta estudo rigoroso que 'incrimine' epilépticos

O autor cita um manual de 40 anos e uma descrição de 1928

JAIR MARI E CÉLIO LEVYMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para justificar o envolvimento da epilepsia em delitos criminosos, o autor do artigo "A epilepsia pode levar ao crime" cita como exemplo dois trabalhos que originaram duas frequências discrepantes de epilepsia entre criminosos (18.9% e 5.4%).
Estes dois estudos, de caráter estritamente descritivo, foram realizados com grupos de criminosos internados. Do ponto de vista metodológico são estudos muito frágeis para a comprovação da relação de causalidade entre a epilepsia e a criminalidade.
Um estudo transversal que não tenha uma composição representativa da comunidade gera uma distorção que recebe o nome de viés de seleção (por exemplo, se há um aumento de internações nas classes menos favorecidas, e se há simultaneamente um excesso de epilépticos neste grupo).
Nesse tipo de estudo, pode ainda haver problemas com os critérios diagnósticos empregados, particularmente com o de um viés de aferição, caso haja interesse do investigador em "demonstrar" a relação entre crime e epilepsia.
O fato que nos levou a publicar o artigo criticado pelo autor é que não encontramos, na pesquisa da literatura médica atual, nenhum trabalho que contemplasse os critérios metodológicos indispensáveis para avaliar uma hipotética relação de causalidade entre epilepsia e criminalidade.
Pelo contrário, os estudos de melhor rigor metodológicos têm reforçado a hipótese da inexistência de tal associação.
O referido autor cita uma vasta literatura sobre o tema: uma descrição de 1928, um manual de psiquiatria conceituado, mas que data de 40 anos, e ainda transcreve com autoridade a importância de um "médico experiente".
A revisão de literatura apresentada pelo colega pouco incorpora da introdução da informática e da aplicação de modelos estatísticos poderosos que, a partir da década de 70, permitiram que os pesquisadores da área médica conduzissem experimentos mais precisos e rigorosos: são estudos prospectivos, longitudinais e com controle, conhecidos por qualquer estudante atualizado.
Em relação à Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 (Classificação Internacional de Doenças), em particular a seção F07, destinada aos Transtornos de Personalidade e de Comportamento Decorrentes de Doença, Lesão e Disfunção Cerebrais, de fato podemos verificar a referência à uma possível inclusão do que tem sido chamado de "Personalidade Pseudopsicopática Orgânica".
Cabe ressaltar que não há um item específico para este termo, como faz entender o autor em seu artigo, e que na dúvida este diagnóstico deveria ser registrado como "Transtorno Orgânico de Personalidade" (com primazia para os sistemas vinculados à síndrome do lobo frontal).
Contudo, o manual é muito claro nos cuidados que o médico deve ter ao empregar este item: "Em algumas ocasiões, diferenças na manifestação de tais síndromes residuais ou concomitantes da personalidade e de comportamento podem ser sugestivas do tipo e/ou localização do problema intracerebral, mas a confiabilidade de tal inferência diagnóstica não deve ser superestimada" (grifo nosso).
A propósito, é interessante observar, e quem sabe informar à Federação Mundial de Neurologia à Academia Brasileira de Neurologia, conferidora dos títulos de especialista em neurologia no país, que há um suposto e muito suspeito movimento de antineurologia —nenhum especialista em neurociências no mundo deve ter conhecimento do mesmo!
Ao falarmos de médico, de crimes e de supostas intenções, não poderíamos deixar de lembrar do personagem criado por Conan Doyle, no século passado, o detetive Sherlock Holmes.
Parece que Sherlock Holmes foi chamado ao Brasil para opinar sobre um artigo publicado na Folha de S. Paulo, há duas semanas, que tratava da relação entre epilepsia e criminalidade.
Ao ler o artigo notou uma referência de um conceituado filósofo francês, Michel Foucault, "Eu Pierre Riviére...". O zeloso detetive foi à biblioteca e devorou livros do autor: a "História da Loucura" e a "Microfísica do Poder".
Detentor de um caráter minucioso, não se deu por satisfeito e buscou sua biografia, acabando por descobrir que Foucault tinha preferências sexuais pelo gênero homônimo. Após intensas investigações e diligências, foi se aprofundando no texto e percebeu que os conselheiros do Conselho Regional de Medicina de SP preocupavam-se com o estigma associado à doença e que poderiam estar agindo no interesse dos pacientes que tinham epilepsia, pois agora andavam preocupados em saber se eram criminosos em potencial.
O devotado detetive juntou todas as peças, chamou seu contratante e disparou: "Absurdamente simples, meu caro colega, podemos verificar uma associação de um antipsiquiatra com outro médico de uma corrente antineurológica... que com certeza não acreditam na existência da esquizofrenia nem da loucura".
Por analogia do raciocínio empregado pelo nosso nobre detetive podemos imaginar como o autor do referido artigo usa suas pistas para desvendar um delito. "Um desmaio na infância aqui, um antecedente epiléptico hereditário ali e um crime hediondo. Absurdamente simples, meu caro colega, um caso típico de epilepsia condutopática". Como diria Michael Shepherd, professor de psiquiatria aposentado da Universidade de Londres: Simplesmente absurdo, meu caro colega!.

JAIR MARI, 41, é doutor pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres, professor adjunto do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo e conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
CÉLIO LEVYMAN, 38, é mestre em Neurologia Clínica pela Escola Paulista de Medicina, Fellow da Universidade de Pittsburgh (EUA), ex-professor de Neurologia das Faculdades de Medicina da Fundação do ABC e de Ciências Médicas de Santos e conselheiro do Cremesp.

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