São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A medida provisória e o arbítrio

HÉLIO BICUDO

Medida provisória e arbítrio
As medidas provisórias previstas no artigo 62 da Constituição Federal têm sido fonte de abusos por parte do Poder Executivo que, diante da passividade dos Poderes Legislativo e Judiciário, impõe sua vontade, invadindo competência exclusiva do Parlamento.
Na verdade, as medidas provisórias, pela maneira segundo a qual vêm sendo editadas, transformaram-se num substituto do decreto-lei de vigência imediata, do qual usaram e abusaram os generais presidentes e, depois deles, o primeiro presidente civil, já entrado o país na fase de recomposição democrática. Entretanto, a lei é tão clara quando cuida desse instituto constitucional que é difícil entender que se aceite essa invasão de um de seus poderes, ainda que com o seu consentimento, quando o Parlamento deixa escoar o prazo de 30 dias para sua apreciação, permitindo sua reedição praticamente "ad aeternum", ou quando o Supremo Tribunal Federal deixa para as calendas gregas o conhecimento de ações diretas de constitucionalidade a ele oferecidas nos termos do artigo 103, da Constituição Federal.
Ora, a medida provisória só pode ser editada em caso de relevância e urgência e perderá eficácia, desde sua edição, se não for convertida em lei no prazo de 30 dias a partir de sua publicação no "Diário Oficial da União". Isto quer dizer, em primeiro lugar, que não basta que haja apenas urgência ou apenas relevância para que seja editada. É preciso que se reúnam os dois requisitos. E mais: que ela possa ser revertida, uma vez rejeitada.
Se a medida provisória não preencher esses requisitos mínimos será, apenas, uma manifestação autoritária, a ser imediatamente repelida, mesmo porque se constitui em crime de responsabilidade do presidente da República ou daqueles que a subscreverem, como está escrito no artigo 85, inciso II, da Constituição Federal.
No caso se trata, de evidência, de ato contra o livre exercício do Poder Legislativo, pois não se pode conceder, com tal amplitude, o poder de legislar ao Executivo.
Se voltarmos à história recente da República, iremos verificar que o ex-presidente Fernando Collor cometera, mediante essa forma ilegal de legislar, crimes de responsabilidade que foram apontados em representações nem sequer analisadas e foi, afinal, cassado por corrupção contra os dinheiros públicos, que o Supremo Tribunal Federal, em um de seus equívocos, não reconheceu.
A medida provisória foi banalizada e, assim por dizer, muitas vezes enfiada goela abaixo do Congresso Nacional sem qualquer reação e, quando ela se deu, o silêncio da Corte Suprema vem enterrando qualquer reação possível.
Como admitir-se medida provisória para regulamentar, por exemplo, simples vendas de automóveis? Como, sobretudo legislar em matéria que não poderá ser revertida pelo Congresso, no caso de não ocorrer sua conversão em lei? E foi isso, exatamente, o que aconteceu com as medidas provisórias que estabeleceram, primeiro, a URV e depois o Real. Estas foram medidas de cunho irreversível e que, portanto, não poderiam ser editadas mediante medidas provisórias. São evidentemente inconstitucionais.
Contudo, a primeira delas acabou sendo convertida em lei e a segunda vem sendo insistentemente reeditada, muito embora se tenha arguido sua inconstitucionalidade e o Supremo Tribunal Federal não tenha ousado tomar uma decisão a esse respeito.
Essas e muitas outras proposições não poderiam ser consideradas matéria de medida provisória, mas de projetos de lei a serem discutidos, votados e, se aceitos, promulgados. O que não se pode tolerar é que se faça "tabula rasa" das prerrogativas do Congresso Nacional e, simplesmente, seja ele substituído em suas funções específicas pelo Poder Executivo.
Não faz muito tempo, o ilustre ministro da Justiça, Nelson Jobim, em uma entrevista a um canal de televisão, afirmava que no Brasil de hoje os Poderes do Estado, que deveriam ser autônomos e harmônicos entre si, realmente buscam invadir áreas que não lhes são próprias: o Executivo quer legislar, o Legislativo quer executar e o Judiciário pretende, ao mesmo tempo, legislar e executar!
Mas isso, sem dúvida, não caracteriza o pensamento democrático capaz de configurar o Estado democrático, mas uma balbúrdia intolerável, que pode redundar numa crise capaz de destruir o Estado Democrático de Direito, pelo qual tanto se lutou.
É de mister que o governo que acaba de se instalar contenha seus anseios legiferantes, permanecendo nos estritos limites legais em matéria legislativa. Mas, sobretudo, é fundamental que os deputados e senadores que compõem a legislatura que se inicia tenham consciência de que foram guindados às cadeiras que ocupam na Câmara e no Senado para representar o povo em sede legislativa. Não podem abrir mão dessa representação, sob pena de serem coniventes com a erosão do Estado de Direito, permitindo que o autoritarismo pouco a pouco se instale no Brasil.
A questão política não se resolve com fatos consumados e não há nada tão urgente que não possa ser objeto de saudável discussão em busca do consenso, que é a qualificação maior da própria democracia. Não é, destarte, violando a Carta Maior que se irá construir um país livre, justo e solidário, como consta do disposto em seu artigo terceiro, quando fala nos objetivos fundamentais da República.
Para as questões urgentes, a Constituição tem remédio, desde que as instituições estejam em perigo imediato, impondo-se, então, medidas unilaterais. Fora disso é violar aquilo que não pode ser violado, transformando as instituições para que se imponha, mais uma vez, o autoritarismo que, afastado na forma, busca sobreviver na substância, diante das inegáveis omissões, tanto do Legislativo como do Judiciário.
Vai daí a importância de estabelecer-se um diálogo entre as forças políticas representadas no Congresso Nacional, ao invés de se impor, à guisa de um trator que tudo esmaga, a vontade política da maioria, desconhecendo-se, pura e simplesmente, de que a minoria existe, e representando apreciável parcela do povo brasileiro, não pode ser alijada de sua representatividade.
Democracia se constitui do jogo de pesos e contrapesos e não tão-somente, como muitos parecem entender, pelo exercício do poder total que será responsável, hoje ou amanhã, pela sua destruição.

Texto Anterior: Darcy Ribeiro
Próximo Texto: Omissão petista?; É proibido fumar; Ética e alarido; Verbas para hospitais; Sistema Telebrás; Jorge Amado; Recomendações a FHC; Sugestão; Caos maior...
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.