São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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O boêmio e o mártir

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Saltava do bonde em frente ao botequim da rua Souza Franco, esquina com o bulevar, botequim existente até hoje, com o mesmo nome: Ponto de Cem Réis. Do lado oposto havia outro botequim, era ali que uma turma de boêmios acabava a noite sem iniciar o dia.
Eu saltava do bonde cedinho, ia ajudar a missa na Matriz de N.S. de Lourdes, logo adiante. Olhava de lado para o botequim, para o bando de rapazes magros e tresnoitados, ovelhas negras que infelicitavam o rebanho —segundo o vigário local que me esperava para começar a missa.
Naquela manhã, nem saíra do bonde e já ouvia a baderna. A noite dos rapazes fora agitada, ainda cantavam, tocavam violão, as mesinhas de tampo de mármore servindo de pandeiro. Eu passei como um anjo de banho tomado, asas imaculadas e revigoradas pelo jejum e pela concentração de quem ia comungar.
De repente, um cara sem queixo, tuberculoso notório (as mães pediam que os filhos o evitassem por causa dos bacilos), largou o violão, pegou uma chapinha de cerveja "Cascatinha" e a jogou em minha direção.
Raspou com força pela minha orelha esquerda. Ouvi ainda a voz fanhosa gritando: "Lá vai o filho do padre ajudar a missa!" Passei a mão pela orelha, havia um arranhão que sangrava. Corri.
Ao chegar à sacristia, sem fôlego, mostrei aquele sangue. Era o testemunho de minha fé. Eu era um mártir —foi o vigário quem o disse. Naquele dia, houve compunção na missa das seis e meia. As beatas pisavam de leve o chão de velhos ladrilhos que o vigário desejava reformar.
Fiquei sabendo que meu agressor fazia uns sambinhas e estudava medicina, chamava-se Noel Rosa. Garantiram-me que ele iria para o inferno. E eu, que derramara meu inocente sangue pela causa de Deus, a partir daquele momento tinha um lugar assegurado no Paraíso, cadeira cativa na mão direita de Deus Padre Todo-Poderoso.
Depois da missa e da precoce canonização, voltei ao ponto de bonde. O botequim estava vazio. Procurei na calçada a chapinha de cerveja. Não sei por que, tinha a suspeita de que devia guardá-la.

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