São Paulo, sábado, 18 de fevereiro de 1995
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Olhai para isto

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Antes de qualquer consideração histórica ou religiosa, existe o consenso de que Cristo é um dos símbolos do sofrimento humano. Ou melhor, é o símbolo em si. "Fulano me tomou para Cristo" tornou-se expressão que se encontra em várias línguas.
E há motivos de sobra para isso. Cristo foi traído, abandonado pelos companheiros, flagelado, coroado de espinhos, insultado, pregado na cruz, teve o peito varado por uma lança, quando sentiu sede esfregaram em sua boca uma estopa embebida em vinagre e fel.
Até aí —e apesar do exagero— tudo bem. Era um plano, o plano da redenção humana. O que tanto Cristo como o plano redentor da humanidade poderiam dispensar é o sofrimento suplementar que continuam inflingindo ao Filho do Homem. Cuja representação mais notória é o nosso doméstico Cristo Redentor, ao menos para mim, que lhe moro ao pé, aqui na Lagoa.
Justo esse Cristo Redentor que o ministro do Meio Ambiente e Recursos Hídricos veio discutir com as autoridades locais. A questão parece ser essa: determinar se o Cristo é federal, estadual ou municipal.
Eu vivi toda a minha vida acreditando que o Cristo era de todos, meu, da minha mãe, que todas as tardes, quando ele se iluminava, rezava por mim. Era da cidade e, de certa forma, do país inteiro, como a bandeira, o hino, a feijoada, o parati, a aquarela do Ary e o capacete do Senna. Cristo era do Brasil —e pronto.
Não é bem assim. No momento em que um governo neoliberal começa a privatizar tudo, acho que agora desejam nacionalizar o Cristo que nasceu de uma idéia pessoal do cardeal Leme.
O prefeito César Maia, o governador Marcello Alencar e o ministro Gustavo Krause passarão o fim-de-semana examinando a questão. Torço sinceramente para que nada de terrível e irreparável aconteça ao nosso Cristo.
Do contrário, seria o caso de se acrescentar aos quadros da Via Sacra mais um: o ministro, o governador e o prefeito, vestidos de centuriões romanos como nos antigos filmes da Atlântida, dando no Cristo a última e desnecessária cacetada.

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