São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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As ameaças da nova classe

LUÍS NASSIF

No início, eles eram oposição. Transitavam pelo mercado financeiro, eram analistas do mercado de capitais, atuavam em empresas de auditoria ou nos "bunkers" acadêmicos. Mas eram oposição. Talvez porque num dia qualquer, de um passado distante, seu sangue adolescente ferveu de vontade de mudar o país e eles ficaram amigos. Depois esqueceram o mote original.
Com a vitória do MDB, em 1982, entraram para o círculo do poder estadual paulista. E aboletaram-se no governo federal com Sarney e o Plano Cruzado.
A "expertise" em pacotes eleitorais, conferida pelo Cruzado (eleitoralmente eficiente, apesar do fracasso), torna-os valorizados como patas de coelhos junto às administrações peemedebistas e tucanas —mesmo os que só pegaram carona no plano. E eles começam a invadir campos adversários.
Até a redemocratização, o jogo político favorecia os grupos de operadores cariocas de "open market". Era inacreditável sua capacidade de jamais errar nas apostas sobre as taxas de juros, sobre os movimentos do câmbio, de adivinhar as prefixações das ORTNs, prever maxidesvalorizações e de encher o baú de dinheiro com os papéis cambiais. É nesse período que surgem futuros super-grupos, como Garantia e Multiplic.

Operando o Estado
A redemocratização inverte o jogo em favor da "oposição". Derrotada na luta contra a inflação, fora do governo a nova classe aprende a cavalgar furacões.
Estende sua influência sobre as estatais, sobre bancos públicos e, principalmente, sobre o Banco Central. Passa a operar no mercado financeiro e de capitais, em projetos de consultoria e auditoria para estatais e, principalmente, no milionário mercado das conversões de dívidas externas de estatais.
Tornam-se especialistas em negócios com o Estado, ao mesmo tempo em que os filhotes da ditadura perdem seu faro infalível e suas calculadoras financeiras começam a falhar até no ponto flutuante.
Com o governo Collor, a "oposição" perde o grande filé da privatização —que, através de Eduardo Modiano, retorna para o lobby carioca.
Mas amplia seu poder sobre o Banco Central e sobre o Banespa. E toma as rédeas da privatização quando cai Modiano. Do mesmo modo que ele, trata de abafar qualquer iniciativa visando utilizar a privatização para quitar dívidas sociais, para criar uma economia mais equilibrada e democrática. Não interessa nada que possa, de alguma forma, abalar seu domínio sobre o programa.
Com o Real, a nova classe atinge a maturidade. Reina absoluta nas grandes apostas em torno do câmbio e das taxas de juros. Enquanto seus adversários cariocas colecionam prejuízos em cima de prejuízos, para nenhum deles há mistérios na complexa matemática do mercado. Acumulam tal quantidade de vitórias e de lucros, que é como se jogassem pôquer com o adversário, podendo enxergar suas cartas.

A ameaça
Que o presidente da República não se iluda, e não se renda à ditadura tecnicista de seus experts. Torne transparente e legítimo o quanto antes o processo de privatização, exija prioridade para as moedas sociais nos leilões e estabeleça regras draconianas nas relações entre área econômica e mercado.
Use a privatização para montar o grande pacto social com a Nação. Não aceite esse lenga-lenga tecnicista sobre eventuais dificuldades em se definir modelos de capitalização do FGTS e do Fundo Previdenciário. E desfaça-se de qualquer auxiliar cuja atuação, de alguma maneira, possa insinuar ligações com operadores de mercado.
Esse jogo de sombras já atingiu dimensões perigosas. Se o processo de privatização for iniciado sem legitimidade, e sem manter à distância os interesses da nova classe, não haverá santo que impeça a derrocada do governo.

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