São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Romance mostra os traumas do tempo

MARCELO REZENDE
DA REDAÇÃO

No ano de 1871, em um chuvoso mês de abril, McIlvaine, o editor de um jornal chamado "Telegram", recebe a visita de um de seus colaboradores, Martim Pemberton, afirmando ter visto seu pai em um ônibus, nas ruas de Manhattan. Logo depois, somos informados que o tal pai deveria estar morto.
Com esses fatos, o escritor E.L. Doctorow inicia seu mais novo romance, "A Mecânica das Águas", tradução de Paulo Henriques Brito para "Waterworks", uma história de desaparecimentos, mistérios e ciência na cidade de Nova York do final do século passado.
Quando foi lançado em 1994, nos EUA, o romance de Doctorow criou uma espécie de moda comportamental nos habitantes daquela cidade. Despertou, enfim, um vívido interesse por aspectos de uma metrópole que resistia à avalanche da modernidade arquitetônica.
Assim, tornou-se extremamente encantador para um novaiorquino descobrir que sua biblioteca pública ocupa um lugar onde, antes, se instalava o reservatório de água da cidade —um dos lugares centrais na trama composta por Doctorow.
Se existe uma exumação do passado em seu livro, o que a rigor é o prosseguimento de seus trabalhos anteriores, é verdade também que dessa vez Doctorow tenta fugir do próprio vício.
Sempre em seus romances os personagens, assim como a cidade que mostra, sofrem traumas purgativos. Invariavelmente causados por um rompimento do tempo. Ou seja, quando atravessam um grande momento histórico e suas vidas são modificadas por isso.
Dessa vez, o grande fato da história já não acontece diante dos olhos de seus personagens (como em "Ragtime", "Billy Bathgate" ou "A Grande Feira" , os dois primeiros adaptados para o cinema) mas é algo que já aconteceu. No caso, a Guerra da Secessão, que quase dividiu a América em dois países distintos.
Esse não é o único tipo de exumação encontrada em "A Mecânica das Águas". Doctorow aproveita essa visita até o século 19 para não apenas falar do passado, mas também nos mostrar como se falava ou se pensava literatura popular naquele tempo.
Para isso mimetiza não um estilo, mas o tipo de ficção que se produzia naquele período, em que um homem caça doentiamente uma baleia, como "Moby Dick" de Herman Melville.
Ou, ainda, um tempo em que, através da ciência, um médico faz com que seu lado maligno passeie livremente pelas ruas de uma cidade, como em "O Médico e o Monstro" de Robert Louis Stevenson.
Mais do que o terror de Edgar Alan Poe, o que "A Mecânica das Águas" carrega como maior influência é uma espécie de literatura fantástica produzida no instante em que não havia nada mais assustador do que a própria ciência.
Se "Mecânica" e seu autor permitissem uma metáfora moderna, poderia ser dito que seu romance, extremamente ambicioso, termina por se parecer menos com um livro e mais como um filme de terror produzido no final dos anos 40.
Menos por deficiência do talento de Doctorow, e mais por sua ingenuidade em acreditar que certas referências de seu leitor não foram brutalmente rompidas. O terror no romance se converte, especialmente no final do livro, em drama burlesco.
Talvez por seu excesso de coragem em querer domar suas influências, "A Mecânica das Águas" termina como um romance que se lê apenas pela metade.
(MR)

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