São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Características podem ter função

DA "DISCOVER"

Nem todos os efeitos da seleção natural são tão invisíveis quanto a lactase e a anemia falciforme. As pressões ambientais também produziram diferenças notáveis entre os povos, especialmente em suas formas corpóreas.
Os motivos disto têm a ver com perda de calor. Quanto maior a superfície de um corpo quente, mais calor corpóreo é perdido, pois a perda de calor é diretamente proporcional à área da superfície.
Para os povos de uma dada estatura, o formato alto e pernas e braços longos aumentam a área da superfície, enquanto um formato compacto, com pernas e braços curtos, a reduz.
Os dinkas e os inuits têm problemas opostos de equilíbrio de calor: os primeiros geralmente precisam reduzi-lo, enquanto os últimos precisam conservá-lo a qualquer custo. Assim a seleção natural fez com que seus corpos fossem modelados de maneira oposta, com base nos climas diferentes dos lugares que habitam.
Hoje em dia tais considerações relativas a formato de corpo passaram a ser importantes para o desempenho atlético, além da conservação do calor. Os jogadores de basquete que são altos, por exemplo, têm vantagens óbvias em relação aos baixos.
Jogadores esbeltos, de braços e pernas compridos, têm vantagens em relação aos jogadores altos porém gordinhos, com braços e pernas curtos. Nos Estados Unidos é comum se observar que os negros têm uma presença desproporcional entre os jogadores profissionais de basquete. É claro que uma razão importante disso é sua falta de oportunidades socioeconômicas. Mas parte da razão provavelmente tem a ver com os formatos de corpo prevalecentes também entre alguns grupos africanos negros.
Mas este exemplo também ilustra os perigos de se criar estereótipos raciais superficiais. Não se pode fazer generalizações abrangentes tipo brancos não sabem pular ou a anatomia dos negros faz deles melhores jogadores de basquete. Apenas alguns povos africanos são notadamente altos e de pernas e braços compridos, e mesmo esse povos excepcionais o são apenas em média, e apresentam variações individuais.
Outras características visíveis que variam geograficamente entre humanos evoluíram através da seleção sexual.
Todos nós sabemos que alguns indivíduos do sexo oposto nos atraem mais do que outros. Também sabemos que ao avaliar a atração sexual, prestamos mais atenção a determinadas partes do corpo de um potencial parceiro sexual do que a outras. Os homens tendem a se interessar muito pelos seios das mulheres, e muito menos pelas unhas dos dedos de seus pés. Já as mulheres tendem a se ligar no formato das nádegas dos homens e nos detalhes de sua barba e pêlos, mas não no tamanho de seus pés.
Mas todos esses fatores determinantes de apelo sexual variam geograficamente. As mulheres khoisan e das ilhas Andaman (território da Índia) tendem a ter nádegas muito maiores do que a maioria das outras mulheres.
A cor dos mamilos e o tamanho e forma dos seios também apresentam variações geográficas. Os homens europeus são bastante peludos, enquanto os homens do sudeste asiático tendem a ter barba e pêlos corporais muito escassos.
Qual a função dessas características, que diferem tão marcadamente entre homens e mulheres? Certamente não auxiliam a sobrevivência; os mamilos alaranjados não ajudam as mulheres khoisan a escapar de leões, nem os mamilos mais escuros ajudam as européias a sobreviver aos invernos frios.
Em vez disso, essas características variáveis desempenham um papel crucial na seleção sexual.
Mulheres com nádegas muito grandes são atraentes, ou pelo menos aceitáveis, para os homens khoisan ou das ilhas Andaman, mas muitos homens de outras partes do mundo as acham feias. Homens barbudos e peludos encontram parceiras facilmente na Europa, mas não se dão tão bem no sudeste da Ásia.
Mas a variação geográfica dessas características é tão arbitrária quanto a variação geográfica na cor da juba de um leão.
Existe uma terceira explicação possível para a função das características humanas geograficamente variáveis, além da sobrevivência e da seleção sexual: que elas não tenham nenhuma função. Um bom exemplo disso são as impressões digitais, cujo desenho complexo de arcos, alças e estrias é geneticamente determinado.
As impressões digitais também variam geograficamente: por exemplo, as impressões digitais européias tendem a ter muitas alças, enquanto as dos aborígines australianos tendem a ter muitas estrias.
Se classificarmos as populações humanas por suas impressões digitais, a maioria dos europeus e dos africanos negros ficariam em uma raça, os judeus e alguns indonésios em outra, e os aborígines australianos em ainda outra. Mas essas variações geográficas nas impressões digitais não possuem qualquer função conhecida.
Não desempenham qualquer função na sobrevivência: as estrias não são especialmente úteis para se agarrar cangurus, nem as alças ajudam os jovens religiosos judeus a segurarem o ponteiro para as escrituras sagradas.
Tampouco desempenham qualquer papel na seleção sexual: você sem dúvida já observou se sua parceira tem mamilos alaranjados ou seu parceiro tem barba, mas com certeza não faz idéia se suas impressões digitais têm mais alças ou estrias. É questão de puro acaso que as estrias tenham se tornado comuns entre os aborígines australianos e as alças entre os judeus.
Nosso fator Rh e várias outras características humanas caem na mesma categoria de características genéticas cuja variação genética não possui nenhuma função.

Tradução Clara Allain

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