São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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O enigma do predador esfomeado

DO "LE MONDE"

René Thom é um dos matemáticos mais conhecidos do mundo. Não é por causa de seus trabalhos sobre fibras em esferas ou a teoria dos envoltórios que sua notoriedade ultrapassou o círculo dos especialistas.
Sua reflexão sobre as crises e transformações, inicialmente sistematizada nos modelos fornecidos pela "teoria das catástrofes", tornou-se célebre devido a suas aplicações e prolongamentos múltiplos em inúmeros domínios das ciências humanas.
Nascido em 1923, antigo aluno da Escola Normal Superior (França), professor titular do Instituto de Estudos Superiores Científicos de Bures-sur-Yvette desde 1963, recebeu em 1958 a medalha Fields, equivalente ao Prêmio Nobel no domínio da matemática. É membro da Academia de Ciências desde 1976.
Em que sua concepção da ciência se opõe àquela da maioria dos cientistas?
Lembro que o pensamento deve primar pela observação e coleta de dados. Já há alguns anos, sustentei diante da Academia de Ciências que a teorização é mais essencial que a experimentação. Aqueles que trabalham nos domínios científicos, na sua imensa maioria, se preocupam com todos os pequenos detalhes experimentais. Mas a pesquisa científica abandonou as grandes questões teóricas.
É por isso que meus trabalhos se situam num estágio intermediário entre a filosofia e as ciências. Em geral, parece preferível poder agir sobre os fenômenos que tentar compreendê-los. Penso que deveríamos tornar a encontrar o projeto de uma "filosofia da natureza" que foi notadamente o de Schelling no início do século 19. Ela merece ser retomada e prosseguida de uma forma nova, se quisermos reduzir o abismo que se cavou no decorrer dos séculos, a meu ver, de modo nocivo, entre a filosofia e a ciência.
Como definir o que o sr. chama de "teorização"?
São todos os dispositivos mentais de que dispomos para concentrar uma informação. No fundo, sou tentado a pensar que a teorização consiste essencialmente na arte de reduzir ao idêntico. A partir de dados bem diversos, e muitas vezes bem diferentes à primeira vista, o método científico vai redundar em um só processo, um fenômeno único. Isso é muito conhecido.
Quando utilizo uma dedução, que vai fazer da proposição B uma consequência lógica da proposição A, trabalho um processo que vai permitir, de certo modo, englobar a proposição B. Esse modo de englobar e de concentrar é o ato principal da teorização.
A que tipo de questão concreta o tipo de raciocínio por figuras pode se aplicar na pesquisa científica? O sr. poderia nos dar um exemplo?
A questão da predação, em biologia, parece-me ser um bom exemplo. Ela permanece extremamente negligenciada: os biólogos preferem dedicar-se à química em vez de se debruçar sobre uma questão fundamental que coloca uma série de problemas delicados.
Partamos de sua afirmação: "O predador esfomeado é sua presa". O que ela significa exatamente?
Eu quis dizer que o predador esfomeado é, de certo modo, dominado pela idéia da presa. De fato, parece-me evidente que um predador tenha necessariamente uma espécie de conceito de sua presa. Quando ele está esfomeado, esse conceito tem tendência a organizar toda sua fisiologia em direção à captura de sua presa.
Formas muito próximas das formas habituais de sua presa vão lhe parecer sedutoras. Ele vai tentar identificar toda forma exterior com essa forma. Se opera essa identificação de modo muito brutal, ele pode ser vítima de seu erro e perecer por causa de sua aproximação. Você conhece a língua da lampréia?
Não. O que é que ela tem de particular?
A lampréia tem uma língua cuja terminação se assemelha a uma larva. De fato, esse peixe totalmente desdentado se alimenta transformando-se em armadilha para os outros com sua língua em forma de isca. A partir do momento em que um pequeno peixe se aproxima da isca e começa a olhar de perto para apanhá-la, a lampréia faz um grande esforço de ingestão de água, e o peixe é arrastado diretamente para o seu estômago.
É razoável que se pense que um predador tenha imagens de suas presas. Mas é mais difícil considerar que ele possua uma imagem das presas de suas presas. Ora, se consideramos essa espécie de pequena isca que a lampréia possui na ponta da língua, e seu mecanismo de captura da presa, a única resposta concebível é que esse organismo chegou a imaginar as presas de suas presas, a ponto de ter criado uma na ponta de sua língua. É verdade que isso coloca de maneira brutal o problema da finalidade em biologia —problema que os darwinistas descartam tranquilamente, dizendo simplesmente que os que não fizeram a escolha certa morrem.
As coisas são mais complicadas que isso. Essa é a razão pela qual é necessário voltar ao estudo das formas biológicas, de sua evolução e de suas transformações, tal como Aristóteles o inaugurou. O britânico d'Arcy Thompson, que traduziu para o inglês os tratados biológicos de Aristóteles, percebeu como a contribuição aristotélica era, nesse aspecto, única e essencial.
O sr. recomenda a leitura da obra principal de d'Arcy Thompson, On Growth and Form (Sobre Crescimento e Forma)?
Com certeza. D'Arcy Thompson compara a forma de uma medusa à das gotículas que se formam quando um corpo cai n'água. É esse tipo de pensamento que eu gostaria de ver aflorar frequentemente nas ciências.
Como qualificar esse tipo de pensamento? O sr. concordaria que se dissesse que se trata de um pensamento "físico", na medida em que ele se apóia constantemente em realidades perceptíveis?
Ao adjetivo "físico" associa-se, em geral, a idéia de uma teoria que se controla estritamente pelos votos tradicionais da análise quantitativa.
A ciência privilegiou exclusivamente o quantitativo, enquanto eu, por minha vez, trabalho a elaboração de um saber que considera as mudanças qualitativas e sua especificidade.
Considere os números 1 e 2. A diferença entre esses dois números é quantitativa ou qualitativa? Certamente irão me responder que se trata de uma diferença quantitativa, uma vez que 2 = 1+1. É difícil negar isso. Mas, por outro lado, considerando os pares "1-2" e "2-1", não se pode dizê-los equivalentes. Essa diferença é de natureza qualitativa.
A organização biológica repousaria então, na sua opinião, sobre diferenças de tipo qualitativo?
Sim, mas com a condição de deixar claro que diferenças equivalentes persistem entre as partes de um organismo quando ele cresce ou encolhe. Após milhões de anos, todas as formas animais durante a evolução souberam reconhecer desse modo os objetos biologicamente importantes que os cercavam, localizando a organização das formas, suas analogias e equivalências.
Como o sr. julga os prolongamentos de seus trabalhos, desde a teoria das catástrofes até a semifísica, em domínios tão diferentes como a biologia, a sociologia ou a semiótica?
Constato que o tipo de idéias que acabo de expor começa a germinar subterraneamente em muitas mentes e deve talvez se desenvolver. Em minha opinião, a teoria das catástrofes só pode oferecer previsões qualitativas, não previsões quantitativas.
Para muitas mentes, uma probabilidade calculada com sete ou oito casas de precisão é muito mais convincente que um argumento fundamentado em considerações qualitativas.
Esses indivíduos esquecem que, se o cálculo em questão é fundamentado em elementos estatísticos —que não são, portanto, numericamente precisos—, o número de decimais é pura ilusão. Segundo essa visão, a teoria das probabilidades é fundamentalmente um embuste.

Tradução de Bertha Halpern Gurovitz

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