São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Sistema político do México está em agonia

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O sistema político mexicano está agonizando, e essa é uma verdade evidente: a esta altura, ninguém pode duvidar de que os acontecimentos mais recentes sejam algo mais do que os últimos golpes de uma mecânica destinada a dirimir conflitos e reproduzir hegemonias, mecânica que deixou de funcionar.
E o fato de que Ernesto Zedillo tenha se visto obrigado a tomar as medidas extremas que se conhece não impede que nos congratulemos com elas. Quaisquer que tenham sido as razões que levaram o presidente mexicano a recorrer a atos de força e a rupturas irreparáveis, o resultado é digno de elogios que não devem ser poupados ao dirigente sitiado em função dos problemas que herdou, de seus erros ou da imensa complexidade que implica governar este país.
Mas as soluções oferecidas para os problemas que se colocam não carecem de contradições próprias; em situações de emergência, como a que o México vive hoje, já não existem saídas fáceis ou desprovidas de inconvenientes.
Uma delas poderia ser a bagagem arrastada por Raúl Salinas de Gortari, e que terá que formar parte do conteúdo político —senão penal— de seu julgamento pela sociedade, ou mesmo pela Justiça mexicana, se for o caso.
Como muito bem observou o semanário "Proceso", Raúl Salinas não era apenas um irmão incômodo do presidente Carlos Salinas de Gortari. Era o encarregado, pelo menos esporadicamente, de missões delicadas e cruciais do governo anterior, e cujos resultados (êxitos ou fracassos) não devem ficar à margem do auto-exame nacional que o México empreende, aos trancos e solavancos.
Canal direto com os EUA
Desde 1988, talvez mesmo desde novembro de 1987, já se sabia em determinados círculos que existia entre George Bush —na época vice-presidente dos EUA e candidato à sucessão de Ronald Reagan— e Carlos Salinas de Gortari um "back-channel", ou canal de comunicação informal e eficaz.
Um instrumento para a criação deste canal foi o contato estabelecido no final de 1987 por José Córdoba, braço direito de Carlos Salinas desde 1981, com Donald Gregg, então assessor de segurança nacional do vice-presidente norte-americano. Outro foi uma relação estreita forjada entre Carlos Salinas e um advogado mexicano de certa idade, amigo íntimo de Bush desde que este trabalhou com petróleo no México, no final da década de 50, e que Gregg sugeriu a Córdoba como contato.
Ainda outro canal foi a relação entre Raúl Salinas de Gortari e Jeb Bush, filho do futuro presidente dos EUA, casado com uma mexicana. Já muito antes de Carlos Salinas tornar-se presidente, uma amizade estreita se forjou, que depois se traduziria em repetidas estadas de Raúl Salinas nas casas de Jeb Bush em locais da Flórida, e do fracassado candidato ao governo da Flórida nos ranchos do irmão do presidente mexicano.
A relevância, a intensidade e as consequências desse "back-channel" são desconhecidas até agora. Seria da maior importância que tanto as autoridades mexicanas quanto o Congresso americano elucidassem o enigma.
Será que ali se discutiram, se resolveram, se negociaram assuntos de Estado dos dois países? Não se pode julgar o regime anterior apenas penalmente; a impunidade que precisa ser erradicada é também a que impede a prestação de contas: não apenas quem morreu e quem roubou, mas também quem contraiu e por que foram assumidos os compromissos e postas em prática as políticas que levaram o México ao despenhadeiro.
Uma segunda contradição tem a ver com a dinâmica que será desatada pela decisão tomada pelo presidente Zedillo de encarcerar Raúl Salinas e de romper pública e rudemente com Carlos Salinas. Não é concebível que este último tenha deixado crescer sua soberba a ponto de pensar que não precisava de várias apólices de seguro de vida: os expedientes, os amigos e cúmplices, a informação e as bombas-relógio minuciosamente colocadas para proteger-se em caso de seu sucessor decidir consolidar-se às suas custas. Se a esse pressentimento sobre o maquiavelismo e a astúcia perversa do antigo dirigente se soma uma situação insólita na política mexicana, ver-se-á que o conflito atual terá repercussões que excedem de longo o âmbito penal e o pessoal.
A "omertá" (a lei do silêncio da Máfia) se aplicava a quem entrava no governo e a quem o abandonava, a vítimas e algozes, acusados e acusadores. Agora não: Carlos Salinas anunciou com toda clareza que pretende brigar para defender seu irmão e a si mesmo.
Ninguém sabe —apenas o presidente Zedillo tem condições de saber— quais são as ferramentas com que Salinas conta para desencadear dita defesa, e se são utilizáveis. O jejum de Carlos Salinas, e suas previsíveis sequelas endiabradas, é apenas uma delas.
Mas a conjunção da vontade de resistir e a possibilidade de dispor de armas para fazê-lo obrigam que se exija um cuidado especial por parte das autoridades mexicanas. O caso contra Raúl Salinas precisa ser perfeito; a conjuntura não permite erros, descuidos, esquecimentos e improvisações.
Isto nos leva a uma terceira potencial contradição. Como já foi dito há tempo, o problema com o irmão incômodo não era apenas de impunidade política e penal, mas também de suspeitas generalizadas, embora nunca comprovadas, de corrupção e enriquecimento.
Por outra parte, não parece restar dúvida de que a declaração feita diante do Ministério Público por Raúl Salinas, em outubro de 1994, de que fazia 20 anos que não via Manuel Mu¤oz Rocha, o deputado do PRI desaparecido e inicialmente acusado de ser o autor intelectual do assassinato de José Francisco Ruiz Massieu, era falsa —falsidade esta que implica um delito penalmente punível.
Mas se Raúl Salinas for julgado pela autoria intelectual do dito assassinato, é essa a acusação que terá que ser comprovada, e esse o delito que terá que ser punido. Não vale acusá-lo de assassinato mas julgá-lo e condená-lo por seus abusos ou mentiras durante o mandato de seu irmão mais jovem.
Al Capone foi encarcerado por um delito menor —sonegação de impostos— quando o país inteiro sabia que seus crimes eram maiores. O inverso —acusar alguém de um delito maior, quanto o socialmente reconhecido são delitos de menor gravidade— é inaceitável, sobretudo num país e num momento onde e quando o império da lei não é uma realidade.
Isto nos leva a uma quarta e última consideração. Para que tudo se faça bem, inclusive num sistema judiciário que funciona por sentença e sem jurados, como o mexicano, a "adversidade" própria do sistema anglo-saxão é absolutamente necessária.
A disputa entre defensores e Ministério Público, entre a autoridade e os acusados, é sadia e indispensável para se fazer justiça. Para isso os acusados precisam de defensores, não apenas diante do juiz como também da opinião pública. E aqui voltamos ao problema das lealdades e traições, da lamentável ausência de constância e convicção da classe política, intelectual e empresarial mexicana, quando se trata de sustentar posições diante da adversidade.
Carlos Salinas se defendeu sozinho, em parte porque seu caráter o leva a isso e em parte porque lhe restam poucos amigos, dos muitos que teve. Não é possível que um país prospere e se supere quando permite que três meses apenas depois de perder o poder, um mandatário que reuniu apoios, cumplicidades e entusiasmo como poucos na história contemporânea, dentro e fora do México, se veja privado de qualquer aliado ou amigo.
Poucos, muito poucos, dos que há meses ou anos aplaudiam vivamente a audácia e os rumos do "Homem do Ano", não conheciam aquilo que hoje se ventila em público. Naquela época Salinas costurava alianças e aplausos apesar de seus conhecidos e extensamente denunciados defeitos, excessos e abusos.
Seria saudável, mais ainda, indispensável para a saúde do país, que os partidários do presidente Salinas continuassem sendo partidários de um Salinas encurralado, desacreditado e abandonado. Quem nunca o aplaudiu, insiste: não existe justiça sem defesa, nem ajuste de contas com o passado sem fidelidade ao passado. É a hora da lealdade: ao país, às convicções e à verdade. E essa é uma só.

Tradução de Clara Allain

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