São Paulo, quinta-feira, 9 de março de 1995
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Intelectuais debatem vitimização da arte

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

A mais importante crítica de dança dos EUA, Arlene Croce, arrasou —sem ter visto— o mais recente trabalho de um dos mais talentosos coreógrafos do país, Bill T. Jones, citando-o como exemplo de "patologia artística".
O texto de Croce, na revista "The New Yorker", ainda a principal referência dos intelectuais norte-americanos entre os meios de comunicação de massa, rendeu uma infinidade de artigos e ensaios desde janeiro.
O mais recente deles, de Joyce Carol Oates, uma das principais novelistas contemporâneas, saiu no "The New York Times" e acaba com Croce.
Oates afirma que o texto de Croce é a "admissão da falência do velho vocabulário da crítica quando confrontado com sempre novas formas de arte em desenvolvimento".
Embora a própria Croce não possa ser considerada direitista e tenha recebido apoios até na bíblia da contracultura, o "Village Voice", em geral com ela se alinharam os conservadores e contra ela os liberais.
O núcleo do argumento de Croce é que a coreografia de Jones integra o que ela chama de "arte da vítima", "um tipo de ilusão de massa, uma ameaça a todas as formas de arte".
Jones criou o balé "Still/Here" (Ainda/Aqui), que junta vídeos e áudios com depoimentos de vítimas de Aids e câncer com bailarinos eles mesmos aidéticos para dramatizar a questão da doença na sociedade.
Para Croce, esse tipo de artifício está "abaixo da crítica" e faz parte de uma "patologia artística (...) que tenta manipular os sentimentos de simpatia, piedade, intimidação e terror das audiências".
É a mesma coisa que exibir no Whitney Museum o vídeo do motorista negro Rodney King sendo espancado por quatro policiais brancos como se fosse um objeto de arte. É a documentação de uma injustiça, não arte.
A mostra do vídeo de King ocorreu de fato, como também a de uma escultura de Sue Williams, que consistia numa poça de vômito para protestar contra desordens alimentares femininas provocadas pela sociedade machista.
Croce argumenta que nada disso é arte, criação do belo, que esses objetos só provocam emoção se o espectador sabe, por exemplo, que o vômito é o trabalho de uma feminista e que só isso lhe dá significado.
Carol Oates afirma que a história da arte está cheia de exemplos de obras de indiscutível valor criadas a partir da vitimização de personagens ou do próprio autor.
"O fato de um ser humano ser vitimizado não reduz a sua humanidade, ao contrário pode ampliá-la", diz Carol Oates.
Ela cita, entre outros, Dostoiévski, Frederick Douglass, Primo Levi, Eli Wiesel, Sylvia Plath, Emily Dickinson, Diane Arbus, Goya, Hogarth, Munch, Kathe Kolwitz, Francis Bacon, Frida Kahlo, Tennessee Williams, Eugene O'Neill, Edward Albee e Sam Shephard como exemplos de artistas que usaram vítimas (muitas vezes eles próprios) como seu objeto de trabalho.
O patrono da "patologia da arte", segundo Carol Oates, é Hieronymus Bosch, o pintor belga do século 15, autor do "Jardim das Delícias" e outros quadros cheios de personagens bizarros colocados em estruturas iconográficas tradicionais do Cristianismo.
"No ponto em que o indivíduo se destaca do coletivo, o artista começa a adquirir o que chamamos de identidade a arte ainda pode estar a serviço da nação ou da tribo, mas ela tem o selo inconfundível da personalidade".
Para Carol Oates, os críticos quase sempre estão atrás dos criadores, tentam destruir o que não são capazes de entender ou aceitar e isso é lugar-comum na história das artes.
Apesar de respeitoso com Croce, o ensaio de quase duas páginas de Carol Oates no "Times" é a resposta mais acachapante que a peça da crítica de dança de "The New Yorker" recebeu.
O público parece concordar com Croce, o que não desabona as opiniões de Carol Oates, já que muitos artistas de vanguarda no passado também foram sacrificados por suas audiências contemporâneas para se consagrarem com as das gerações posteriores.
Mesmo que o futuro possa dizer que a maioria estava errada, é inegável que se dissemina na sociedade norte-americana um sentimento de saturação e de aborrecimento com a obsessiva preocupação de parte da comunidade artística em exibir as chagas de desgraças como a Aids e a miséria.

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