São Paulo, quinta-feira, 9 de março de 1995
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Menino de rua faz rap para Hillary Clinton

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A COPENHAGUE

Saul Vicente do Amaral, 14, não tomou conhecimento da solenidade de um "tribunal" nem prestou a menor atenção ao salão art-déco do museu dos Trabalhadores de Copenhague (Dinamarca).
Correu para o piano, quase oculto pelas mesas e cadeiras do tribunal, e improvisou um rap dedicado a Hillary Clinton, primeira-dama dos Estados Unidos:
" A mulher do presidente é feia/ ela é feia de matar/ ela é a loira burra", cantou alto e esganiçado.
Saul Vicente do Amaral é um menino de rua de Nova Iguaçu (RJ). Ganhou o direito a seus 15 segundos de celebridade por ter aparecido ontem no "Ekstra Bladet" (Folha Extra), tablóide popularesco da capital dinamarquesa, onde acontece a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social.
Ele criticou a suposta feiúra de Hillary, crítica repetida no rap improvisado.
O menino cruzou com a primeira-dama anteontem, quando ela visitou um jardim de infância.
A notícia do "Ekstra Bladet" o transformou em atração no tribunal simulado montado por ONGs (organizações não-governamentais) sobre assassinatos de crianças de rua em alguns países do mundo (o Brasil entre eles, claro).
Não fosse por isso, talvez sequer fosse notado, porque a história de Saul é, a rigor, a história do comum dos meninos de rua do Brasil.
Nascido no Ceará, pai alcoólatra e violento, nove irmãos, foi para a rua porque os 12 membros da família viviam em um só cômodo.
"Saí para dar espaço para meus irmãos", foi a primeira explicação que deu a Lúcio Flávio da Silva Nascimento, 30, ex-goleiro do Goitacáz (Campos, RJ), um dos educadores de rua do projeto "Rodar".
O nome vem do fato de que o projeto, financiado por uma ONG holandesa, não tem sede. "Roda pelas praças de Nova Iguaçu", conta Lúcio Flávio.
Mas aos jornalistas, Saul deu outra explicação: "Eu tinha vontade de cheirar cola".
Saul já fugiu de seis escolas. Na primeira delas, diz que um colega esfregou o tênis na sua cara. Ele ameaçou reagir e o professor lhe deu um tapa.
"Peguei uma faca e fui para cima dele. Só não cortei porque o professor de educação física me segurou", diz o garoto, muito articulado e com um mínimo de erros de português na fala, apesar da falta de escolaridade.
"Se a gente não trabalhar bem com ele, vai ser líder de gangue", admite Lúcio Flávio.
A vida de Saul na rua é o imaginável. "Se não roubar, a gente morre de fome. Para dormir, a gente dá um jeito. Ou compra um cobertor ou pega (rouba) na loja", conta.
Sua esperança de subir na vida é o futebol. É goleiro no time da Escolinha Fruto da Terra, criada pelo jogador Zinho, ex-Flamengo (o time de Saul), ex-Palmeiras, atualmente no Japão.
Saul não pára um minuto nem obedece a ordem alguma. Lúcio Flávio conta que essas crianças estão habituadas a fazer apenas o que querem e que só é possível tirá-las da rua quando o medo se torna maior do que essa falsa liberdade.
Esse tempo não parece ter chegado ainda para Saul. Nem mesmo depois de ter gostado de Copenhague. "É melhor do que o Rio, porque aqui não tem roubo e é um país limpo", afirma.
Na volta, corre o risco de ser uma das quatro crianças ou adolescentes assassinadas a cada dia no Brasil, conforme diz o cartão-postal que o " tribunal" das ONGs distribuiu para ser enviado ao presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso.

Rap
A expressão "loura burra" foi popularizada pelo cantor Gabriel, o Pensador, no rap "Lôraburra", que foi sucesso no verão de 94.
A música fala de mulheres bonitas que não têm nada na cabeça. Existem mulheres que são uma beleza, mas quando abrem a boca, hummm que tristeza!, diz o início da letra.
A música faz parte do primeiro disco do cantor, "Gabriel, o Pensador", que saiu em agosto de 93. " Lôraburra" também virou hit em Portugal no final do ano passado.

Colaborou a Reportagem Local.

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