São Paulo, quinta-feira, 9 de março de 1995
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Superguarda-livros

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — A primeira vontade foi escrever "megaguarda-livros". Merecer eles merecem, mas o leitor deve ser poupado do cacófato. Desde a implantação do Plano Cruzado, desfilam pela mídia variados representantes da nobilíssima classe que antigamente andava nos grotões dos escritórios e repartições, a pala de celulóide verde protegendo as vistas fatigadas pelas colunas de números.
Políticos, empresários e técnicos foram enxotados para os bastidores, deixando o palco para a turma que aprendeu a prever o déficit ou o superávit na base do "alguma coisa entre" dez ou nove. A diferença é que falam em trilhões, em nuvem globalizada que vai de um a outro mercado. O ser humano, pobre ou rico, fica esmagado diante de fatores que ninguém domina: somente os guarda-livros, meteorologistas de catástrofes, depois do vendaval explicam que houve vendaval.
Numa peça de Bertold Brecht é feita a pergunta: "Em que sentido o três é maior do que o dois?" O Brasil pode crescer nove ou dez por cento este ano, comportar-se como um tigre asiático, mas a situação continua a mesma. O refresco dado pelo real tem os dias contados, já cumpriu a função para a qual foi criado.
A qualidade de vida do brasileiro continua baixando e não se precisa ir aos bolsões de pobreza para tomarmos conhecimento da degradação a que chegamos. Os temporais em São Paulo sitiaram a classe média mais operosa e numerosa do país, emparedada em seus carros.
No Rio, nunca foi tão curto o caminho entre o Primeiro Mundo dos camarotes, da passarela faiscante, e as valas negras abertas na carne do asfalto, exalando o cheiro da miséria.
É aqui que entra o superguarda-livros com o jargão que pretende explicar tudo. Tínhamos reservas astronômicas (que estão se derretendo mais depressa do que o iceberg que se desprendeu da Antártida). O Brasil não é o México nem a Argentina. Tamanha novidade assombra os europeus que ainda pensam que o Rio de Janeiro é a capital de Bueno Aires.

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