São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 1995
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Retificações

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — "Só a parte inventada de nossa vida —a parte irreal— tem alguma razão de ser. A vida real é desperdiçada." A citação é de uma carta de Gerald Murphy a Scott Fitzgerald, em 1935. Uma linha auxiliar da "lost generation", Murphy, Scott, Cole Porter, alguns poucos americanos tentavam reviver em Paris o clima da turma anterior, em busca do cenário que Henry Miller havia esgotado.
A citação é para me justificar. Volta e meia, cometo expedições ao passado e recebo contestações de testemunhas das lembranças que me perseguem.
Contei a história do Perfume de Gardênia, que vivia ali pelo Posto 2, na Copacabana dos anos 60. Um contemporâneo daquela época afirma que Perfume de Gardênia era um canadense que viera para o Brasil tentar a carreira de pugilista —o que torna o personagem, ainda que mais real do que o meu, bem mais incompreensível.
Perfume de Gardênia funcionou como leão de chácara daquelas boates do Beco das Garrafas, garante o meu informante que ele chegou a ter caso com uma das musas que lançavam a bossa nova —o que continua aumentando o seu mistério e malignidade.
Foi esse mesmo Perfume de Gardênia que eu vi, outro dia, quando parei o carro numa esquina de Copacabana, gritei-lhe o apelido e ele ficou na calçada, dando bananas em minha direção. Isso só pode ser contestado por mim ou por ele. Acredito que nem Perfume de Gardênia nem eu próprio tenhamos tamanho amor à verdade histórica.
Outra correção, esta vinda de ex-colega de seminário, hoje monsenhor e vigário aqui no Rio. Não era o padre Cipriano que colocava sobre o altar os paramentos roxos da quaresma. A função era exercida por um aluno, cujo nome não recordamos, mas que tinha o apelido de Jacaré.
Também me afirmaram que não existem quaresmeiras amarelas: eu as confundira com as acácias, que igualmente florescem nesta época do ano.
Ficam as retificações. Como não tenho vocação de ombudsman de mim mesmo, continuarei acreditando nos inofensivos delírios de memória —que só a mim prejudicam, mas, às vezes, dão uma bruta vontade de me perdoar.

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