São Paulo, sábado, 18 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Truffaut põe em livro charme de seu cinema

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Livro: O Homem que Amava as Mulheres
Autor: François Truffaut
Tradução: Fernanda Scalzo
Prefácio: Otavio Frias Filho
Págs.: 204
Preço: R$ 8,57
Lançamento: 20 de março

François Truffaut foi, desde sempre, o melhor escritor entre os cineastas da Nouvelle Vague (com tanta frequência acusados de "literários"). Sua veia de polemista está na melhor tradição francesa; o colorido e a variedade de suas frases sempre é capaz de revelar uma surpresa ao leitor.
Nada estranho, portanto, que ele passasse do cinema à literatura com o cine-romance (adaptação literária do roteiro) "O Homem que Amava as Mulheres". Reconstituição fiel da trama do filme de 1976, primeiro chama a atenção no livro é, justamente, a distância que separa cinema e literatura.
Vejamos o estranho destino do personagem Aurore. Ela é a funcionária do serviço telefônico que todas as manhãs acorda o protagonista, Bertrand Morane. Como quase todas as mulheres com quem ele topa, é devidamente paquerada. Mas Aurore mal entra em cena. É uma figurante que quase some da lembrança do espectador.
No cine-romance, ao contrário, ela ganha relevo. Seu flerte com Bertrand adquire uma presença e uma densidade que nas imagens parecia não ter.
Aquilo que o cinema nos sonega —a possibilidade, por exemplo, de o espectador deter-se em um diálogo— é generosamente oferecido pelo livro. E aquilo que só a imagem pode oferecer —a multidão de elementos que lhe dão vida— escapam à forma literária.
No filme e no cine-romance, Bertrand é um amoroso. Não ama uma mulher em particular, mas o feminino em geral. Todas lhe parecem especiais. Mas, quem é ele?
Segundo o leitor de uma editora, que faz o relato sobre a autobiografia de Bertrand, seu trabalho "é um tecido de contradições, a ponto de, quando se chega ao fim do livro, não se saber o que pensar do personagem. É um doente? Um obcecado? Um caso patológico?"
A incompreensão do leitor se explica: um livro agrega, disseca, unifica gestos. Um filme, ao contrário, é o relato de uma incompreensão, da impossibilidade mesmo de saber o quê ou quem é um homem. É da natureza da imagem. Múltipla, ela põe e dispõe, afirma e nega à medida que trabalha os infinitos dados que a compõem.
Se muita coisa muda do filme ao livro, algo permanece: a leveza de tom e a graça do estilo continuam, aqui, levando o leitor de uma página a outra, ao longo dessa sucessão de episódios que se recusam a formar um enredo, no sentido tradicional da palavra.
Nesse sentido, as idéias de Truffaut passam da tela às páginas com desenvoltura. Ele poderia ser um subversivo da nossa ordem amorosa, organizada em torno de relações estáveis.
Mas a subversão pressupõe um tanto de intolerância que, em definitivo, não combinava com a personalidade de Truffaut. Tudo que ele pretende é mostrar um homem para quem transpor o fosso que separa os seres (e os gêneros) é uma necessidade tão imperativa quanto respirar. Assim como conseguiu mostrá-lo em imagens, o faz em palavras. As duas versões soam diferentes —e complementares— em vários pontos. São, ambas, feitas com prazer e para o prazer.

Texto Anterior: Wooster trouxe último suspiro dos anos 80
Próximo Texto: Márcio Souza busca identidade da Funarte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.