São Paulo, sábado, 18 de março de 1995
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A Roma de Darcy não é crepuscular

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Índio, quando namora, não dá beijo, para nem falar em beijo de boca e língua, essa permuta microbiana que os civilizados inventaram. Dar beijo na amada à moda de Brasília foi uma das coisas que o índio terena Guli precisou aprender quando sentiu que cada dia gostava mais de uma certa morena e que não podia eternizar o idílio indo à lanchonete para comer sanduíche e tomar Coca-Cola.
Guli teve de aprender várias outras coisas para chegar ao duvidoso privilégio de tirar seu brevê de brasileiro informado e consciente da sua cidadania. Aliás, brevê mesmo, brevê de piloto civil foi sua conquista primeira.
Nascido terena, de uma raça de índios cavaleiros como os guaicurus, que aprenderam há séculos a domar cavalos asselvajados, descendentes dos trazidos pelos espanhóis no século 16 para o rio da Prata, Guli, galopando em pêlo através dos campos da sua aldeia, levantava logo os olhos, mãos na crina do animal, quando ouvia no céu o ronco de um aparelho da Força Aérea Brasileira.
O sonho dele era, para usar um qualificativo discreto, pegásico: no pescoço nervoso do cavalo imaginava o mancho do avião, nas crinas, os comandos, e galopava, galopava, para transformar o cavalo em sombra do avião.
Guli, cujo nome conhecido é Marcos Terena, companheiro nosso aqui da Folha, onde escreve artigos na página três do primeiro caderno, conseguiu há anos tornar-se piloto da Fundação Nacional do Índio. A história de Marcos Terena virou "O Índio Aviador", um leve romance para gente jovem, escrito por Atenéia Feijó, jornalista que é índia honorária, de tanto que tem andado entre índios.
Conheci Atenéia no Pantanal, em tempo de enchente, fazendo, como eu, reportagem nas fazendas onde se come maria-isabel, arroz com carne-seca, no café da manhã. Me lembro que quando a gente descia dos altos de uma fazenda daquelas, montando os atarracados cavalos pantaneiros, em breve chegava à planície das águas da cheia. Cavalgava-se dentro d'água.
Nunca mais me esqueci da incontrolável vontade de rir que me acometeu quando a água começou a chegar ao peitoral dos arreios e em seguida a nos entrar nas botas, sem que ninguém parecesse reparar. A conversa continuou animada como se nada houvesse de extraordinário naquela cavalgada anfíbia. E tranquila
A relva cheirosa do Pantanal resiste à enchente, mantém sólido o solo. Os cavalos sabem disto. Não há pântano no Pantanal. Quando a cheia cede e a água vai voltando ao leito do rio e aos corixos, lá está o prado, o capim na bandeja para o gado.
Atenéia escreveu "O Índio Aviador" (Editora Moderna) ouvindo Marcos Terena e pensando nos jovens leitores que vão encontrar no seu breve e poético relato uma espécie de roteiro do que está acontecendo com os índios que vão realizando a façanha de se transformarem em brasileiros sem perder a indianidade.
É façanha bem mais difícil do que se pode imaginar. Basta dizer que, de início, Marcos, graças ao apelido que lhe deram de Japonês, conquistou na Funai um inesperado prestígio: pensaram que ele era de fato japonês e não um mero terena da aldeia de Taunay. Apesar de parecer favorável da Aeronáutica, Marcos Terena foi recusado como piloto da primeira vez.
Mas não chorou no ombro de nenhum branco. Foi visitar um sábio tio-avô, Pihu, na sua aldeia natal. Foi ficar mais índio, para lutar melhor pelo que queria. Durante anos do regime militar, e apesar de Marcos Terena já ser conhecido na Funai como piloto de primeira ordem, seu contrato de trabalho não era assinado. A menos que ele se emancipasse antes —foi o que lhe disse o coronel que então mandava e desmandava— não seria contratado nunca. Seria biscateiro de vôos ocasionais.
Depois de ouvir, atentamente, a história de sua última tentativa, a namorada lhe perguntou: "Deixa ver se eu entendi. A política de emancipação seria uma espécie de extermínio cultural e social dos índios, induzindo-os a renegar a própria identidade? Acertei? Um índio emancipado acabaria perdendo também o direito legal à sua reserva territorial... Ou, caso uma comunidade inteira resolvesse se emancipar, seu patrimônio certamente seria calculado sobre a proporção numérica de indivíduos. E, se a propriedade dessa comunidade emancipada fosse invadida por fazendeiros, ela estaria juridicamente abandonada?..."
Sim, concordou Marcos, essa era a idéia embutida na "emancipação", mas havia um certo parágrafo do artigo 16, que diz que a Funai propiciará o acesso de índios integrados aos seus quadros. Não exige emancipação nenhuma. A dificuldade era que quem citava tal parágrafo de tal artigo era fichado pelo coronel como subversivo.
E foi necessária uma verdadeira guerra entre índios do Xingu e fazendeiros que haviam invadido terras da BR-80 —quando Marcos Terena, aviador-diplomata, foi fundamental em restaurar a paz— para que ele conseguisse também a recompensa pela qual tanto lutava. Com seu trabalho, Marcos despertou a admiração do ministro do Interior, Andreazza.
"Os coronéis, oriundos do Conselho de Segurança Nacional, começam a perder terreno dentro da Funai. (...) Os coronéis são afastados e os antropólogos reassumem suas funções", conta Atenéia. Marcos é convocado a uma reunião solene da Funai. Assina afinal seu contrato de trabalho. "Sem emancipação. Como índio aviador, terena mesmo."
Atenéia Feijó escreveu um livro que comove por nos deixar entrever o que pode vir a ser o Brasil se se dispuser a absorver, em vez de destruir, sua grande variedade racial, sem querer, como parece querer, se transformar num carbono ruim da Europa ou um desmaiado xerox dos Estados Unidos.
A imagem de Darcy Ribeiro, comparando o Brasil a uma Roma tardia, não tem nada de crepuscular. Tardia pela distância histórica que nos separa do modelo. Mas uma Roma que tem em si a força, apesar de ainda não ter o juízo, de trocar seu cavalo pelas naves a serem inventadas.

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