São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Para Cebrap, governo FHC não pode fracassar

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O governo Fernando Henrique não pode fracassar ou um gaiato qualquer de Cingapura vai mandar fechar o país".
É assim que o economista e petista Francisco de Oliveira, 61, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), resume suas expectativas em relação ao futuro do país.
Ocupando o lugar que foi do próprio FHC entre 1980 e 1983, Chico de Oliveira afirma que mesmo aqueles que votaram contra FHC não podem cair na armadilha suicida de apostar que o Brasil vai seguir a rota do México.
Na última quarta-feira, ele e o filósofo José Arthur Giannotti, outro ex-presidente do Cebrap e um dos intelectuais que mais apostaram na eleição de FHC, debateram, pela primeira vez publicamente, em encontro registrado com exclusividade pela Folha, os dilemas do governo e o futuro do Cebrap.
Paradoxalmente, foi Giannotti quem disse que "o início do governo está perdendo aquilo que ele traz em seu bojo": a promessa de um país viável. Entre divergências e consensos, uma constatação une os pares acadêmicos: FHC encerra a era das utopias e só resta a enorme realidade.
Seguem, abaixo, trechos da debate entre Giannotti e Francisco de Oliveira.

Folha - Houve uma debandada de pesquisadores do Cebrap para o governo. Como fica agora a situação de vocês?
José Arthur Giannotti - Cada vez que há uma vitória das forças democráticas, o Cebrap sofre uma sangria. Se o Lula tivesse ganho, aconteceria a mesma coisa.
O Cebrap continua sendo um centro de pesquisa que quer entender o país e acompanhar a conjuntura. É evidente que as campanhas eleitorais deixam suas marcas, mas, como dizia o velho Hegel, as feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes.
Folha - Como o Cebrap pretende repor esse pessoal?
Giannotti - O problema é maior. A geração dos fundadores está se esgotando, e o Cebrap não tem conseguido reter as gerações intermediárias, sobretudo por causa da melhoria da universidade.
Oliveira - Seria um esforço tolo e inútil esconder que a campanha eleitoral abalou o Cebrap. A campanha chegou mesmo a dificultar o diálogo entre nós, sobretudo os mais velhos. Mas a gente conseguiu superar isso. O Cebrap é um centro intelectual com 25 anos, cujo papel político é bem marcado. Em vez de esconder a discussão embaixo do tapete, levamos ela para a rua. Isso tende a frutificar daqui em diante na pesquisa.
Folha - O Cebrap foi, num primeiro momento, um foco de resistência ao regime militar. Foi, depois, um centro de "angústia democrática", como já definiu o Giannotti. E agora?
Giannotti - Temos de aprender a conviver sem utopias, com projetos a médio prazo, realistas, que pressuponham a sociedade democrática em funcionamento. Hoje, por exemplo, não me interessa mais a denúncia da universidade, mas sim saber como é que se reforma a universidade.
Oliveira - O novo número da revista "Novos Estudos" traz um dossiê pluralista sobre a questão da governabilidade. É o primeiro resultado, em 95, do "quase vale da morte" que a gente precisou atravessar no ano passado.
Folha - Giannotti concorda que se passou por um "quase vale da morte"?
Giannotti - Concordo. No fundo, a discordância básica dentro do Cebrap é sobre o que a gente ainda conserva de esperança em socialismos estatais.
Oliveira - A vida do Cebrap sempre foi marcada pela disputa em torno de uma interpretação do Brasil. Há dois projetos no Cebrap que concorrem. Um é o que o governo do Fernando Henrique representa. Para simplificar, digamos que esse projeto herda as tradições da social-democracia e se abre para o mercado.
O outro projeto apanhou as tradições da social-democracia um pouco a contragosto e tenta muito mais preservar as tradições do socialismo.
Giannotti - Eu salientaria não tanto a questão do mercado, mas o aspecto da forma do Estado.
Oliveira - A forma do Estado não sei se é tanto uma novidade do lado de vocês, Giannotti. Eu me lembro que quem redigiu o discurso do Fernando Henrique quando ele concorreu à sublegenda do antigo MDB, em 78, foi este cidadão aqui. O tema do discurso era precisamente a reforma do Estado.
Para mim, a reforma do Estado não é necessariamente a diminuição do seu tamanho. Naquela ocasião, o Fernando, muito sabiamente, não fez aquele discurso. Na ocasião da convenção, quem o chamava de comunista era o Robertão (Roberto Cardoso Alves), que era ventríloquo do (Franco) Montoro. Quem assegurou a sublegenda ao Fernando foi o Quércia, não por amores a ele.
O Fernando, com argúcia, percebeu que não era a hora de fazer discurso sobre reforma do Estado.
Giannotti - O problema não é o tamanho do Estado, se é mínimo ou não, e sim as formas da intervenção na economia, na educação e na saúde. Aí, há diferenças...
Oliveira - Elas são bastante significativas. Contraditoriamente, a ala socialista é mais aberta às iniciativas da sociedade do que a ala social-democrata moderna. A ala social-democrata moderna da sociedade civil só toma a parte do mercado.
Giannotti - Isso não é verdade.
Oliveira - Vocês mais ou menos tem horror a povo.
Giannotti - Uns podem dizer que têm horror ao povo, outros podem dizer que têm veneração pelo povo. Eu sou povo e, como parte do povo, eu o recebo e o nego. Eu ainda tenho veleidades dialéticas.
Oliveira - Não só veleidades, você tem uma puta competência. Isso é muito delicado. Quem tem insistido muito no novo papel da sociedade civil é a ala socialista e não a ala social-democrata.
Giannotti - Acho que nós estamos tendo de reiniciar a questão sobre que tipo de sociedade nós queremos ser.
Eu fiquei assustado com uma entrevista recente das páginas amarelas de "Veja" com aquele garoto, filho da Dorothéa Werneck, que passou em primeiro lugar em vários vestibulares. Mostra tudo que eu não quero que a universidade venha a ser.
Em termos clássicos, a posição dele é absolutamente apolínea, no sentido de que o meio-termo é a linha a ser seguida. Nada de paixão, nada de dionisíaco.
A entrevista revela que ele não tem nenhum compromisso com o refinamento. Filme, para ele, é aquilo que a gente não precisa pensar sobre. Arte são os retratinhos do Renascimento.
A arte moderna, diz o rapaz, é algo que qualquer criança pode fazer. Ele mostra uma enorme arrogância em relação às formas culturais que não sejam aquilo do seu interesse imediato.
Esse menino exemplifica um tipo de sociedade que eu, na minha velharia, não aprovo. Fica a questão: como é que nós vamos, sem utopias, apontar para horizontes que sejam herdeiros de certas tradições que marcaram o Ocidente? Uma das tarefas do pensamento progressista hoje é recolocar a questão sobre o que vamos ser.
Folha - Não seria antes o que podemos ser diante do exíguo raio de manobra que resta a um país periférico no contexto do capital globalizado?
Giannotti - Eu não creio. Acho que esse início do governo Fernando Henrique está, de certo modo, perdendo aquilo que ele traz no seu bojo, mas espero e tenho certeza de que isso deve ser recuperado rapidamente. Trata-se de marcar um rumo para uma sociedade democrática em que os valores não só da igualdade, mas da realização do ser humano, das suas potencialidades, tenham lugar.
Oliveira - Este governo não pode fracassar.
Giannotti - Seria não só o tumulto social, mas uma espécie de pasteurização das esperanças.
Oliveira - A aposta no fracasso é suicida. Se fracassar, vai ser qualquer gaiato de Cingapura que vai mandar fechar o Brasil.

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