São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Reenganaria

RICARDO SEMLER

Os desfiles de Paris mostram modas mais estáveis do que as das empresas. Refiro-me à reengenharia e outras darlings du jour. A mosca picou até o Bresser, que pensa em contratar um gringo para "reinventar o governo". Neste vai-e-vem de decotes e comprimentos de saias empresariais, o forte, sempre, é a mistificação.
Por que o empresário é tão volúvel em relação a esses caprichos do momento? Em parte porque quer acreditar que é moderno. Assim, tem vergonha de não estar na crista da onda (Erasmo Carlos vira Lucio Dalla). Ouve dizer que a Federal Express fez reengenharia, a Toyota o Just In Time, a Intel um novo CCQ, e voe sigla por aí.
As revistas de negócios reforçam a tendência. Afinal, são as Elles e Vogues do ramo —têm de mostrar a coqueluche e, pra dar credibilidade, carece mostrar resultados.
E o empresário, apesar de estar careca de saber que números são mais volúveis do que coordenador político de governo, acredita piamente no que lê. Me engana que eu gosto. Toca história de sucesso retumbante, executivos sorridentes. Depois que implantamos o ZZB, dizem, os lucros subiram 157%, e a produtividade, 63%.
Tudo balela. Não que os números sejam falsos (aliás, muitas vezes também o são) —é que o bom resultado pode ter sido conseguido por dezenas de outras razões, como melhora de mercado ou mudança de câmbio, mas se forja uma simbiose de cumplicidade entre a revista e o entrevistado, e o crédito vai para o novo e milagroso método, enganando assim o leitor. Que gosta.
O que é, então, a famosa reengenharia? Um conceito simples, e muito sexy, que parte do pressuposto correto de que as empresas são sempre burocratizadas, lentas e emaranhadas. Assim, precisam passar por um processo forte de enxugamento, diminuição de níveis hierárquicos e eliminação de procedimentos morosos. Eureka!
Escreve-se um livro que coloca estas obviedades em linguagem sofisticada, dá-se um verniz científico à coisa, e pronto. Dois milhões de exemplares em 14 línguas. Vira o Maktub das empresas. Fazer ventar e chover, porém, ninguém conseguiu até hoje. Agora, depois que os autores do Reengineering formaram empresas de consultoria que faturam US$ 600 milhões por ano, um deles, o Champy, acaba de lançar um livro em que reconhece que a coisa não funcionou e que quase nenhuma empresa conseguiu os resultados pretendidos.
Mas para quem lê as revistas de business tudo funciona, é só questão de trabalho árduo e determinação. Os leitores se miram nos altos exemplos oferecidos para o seu deleite. No caso da reengenharia, posso falar de experiência própria. Sem nunca ter usado os conceitos, a Semco foi recentemente eleita, por um grande júri composto por gurus da administração, como Tom Peters e os próprios autores do Reengineering, uma das cem empresas melhor reengenheiradas do mundo (a única da América Latina). Que baboseira. É o público sendo levado na conversa, e gostando ainda.
O problema fundamental é que qualquer técnica ou inovação funciona por algum tempo e depois entra em estado de coma. A única solução é montar uma arquitetura sem radicalismos e superesforços temporários, e que possa resistir aos modismos. Não adianta enfeitar o pavão para dar uma de chapchura, nem chamar urubu da burocracia de meu louro. O governo e a maior parte das empresas privadas requerem o uso de uma só coisa —esta sim rara e revolucionária—, o bom senso.

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