São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Na Zona da Mata, aposentadoria é ficção

XICO SÁ
ENVIADO ESPECIAL AO NORDESTE

Aposentadoria por tempo de serviço ou por idade? Se a questão preocupa um imenso contingente de trabalhadores urbanos que se prepara para vestir o pijama e os chinelos, ela é indiferente para José Carlos de Lima, de 42 anos.
Pelo projeto de reforma da Previdência do governo Fernando Henrique Cardoso, ele não deveria mesmo se preocupar com a sua própria aposentadoria.
Afinal, ainda faltam mais 23 anos para José Carlos chegar à idade que o ministro Reinhold Stephanes considera a ideal para o trabalhador pendurar a enxada.
Pelo outro lado, pelas contas dos que defendem a aposentadoria por tempo de serviço, José Carlos estaria prestes a se retirar do —literalmente— fardo da sua labuta.
Desde os 9 (portanto há 33) anos ele trabalha no no corte de cana, no engenho Cabeça de Negro, em Primavera —município da Zona da Mata pernambucana, a 80 km de Recife.
Mas, nem tanto ao escravo, nem tanto ao senhor. O critério de José Carlos para a sua própria aposentadoria não tem nada a ver com a batalha que se travará pela reformulação da Constituição.
"Vou me aposentar debaixo de sete palmos de terra", diz ele, média de 2,4 toneladas de cana cortadas por dia, referindo-se à profundidade das covas nos cemitérios do interior do Nordeste.
Aliás, não é só o cálculo da idade para a aposentadoria que precisa ser revisto nesta região do Brasil. Na região onde José Carlos vive, a expectativa de vida é em média de 47 anos —não muito longe da metade da de um país desenvolvido como o Japão, por exemplo.
O cálculo da aposentadoria de José Carlos só não é mais original —sob qualquer critério— do que o do seu colega, Amaro Antonio dos Santos. Ocorre que Amaro tem duas idades: 58, no registro oficial, e 65, segundo ele mesmo.
"Faltavam só dois, agora vou morrer devendo alguns anos à essa tal de aposentadoria", diz (o que vale, para a Previdência, é a data do registro em cartório).
Amaro Antonio dos Santos conta que nasceu, realmente, em 1930. "O rapaz do cartório anotou 1937; depois não adiantava mais reclamar", diz, resignado, o homem das duas idades, trabalhador na usina de cana-de-açúcar de Amaraji (PE) desde os 8 anos (aliás deste o primeiro ano de idade, se valer a data do registro).
Depois dos 30 (ou dos 23), ele deixou o corte, mais pesado, e foi cuidar do rebanho de gado dos usineiros, tido como trabalho leve.
Santos é conhecido em sua região pelo número de filhos que espalha pelo mundo. Gaba-se de ser pai de 50 severinos.
Pelas suas contas, 42 sobreviveram e oito morreram ao nascer. Está com a quarta mulher, com quem teve dez crianças. Seu salário, assim como a sua aposentadoria, também é tema de discussão nacional: o mínimo de R$ 70.
Além dos canavieiros nordestinos como José Carlos e Amaro e de seus colegas do interior de São Paulo, outros grupos passam pela mesma dificuldade no cálculo da aposentadoria.
É o caso, por exemplo, dos trabalhadores de minas de carvão e dos sertanejos cavadores de poços artesianos no Ceará.
Entre esses últimos, é quase um milagre da natureza encontrar um "ancião" que consegue comemorar os 40 anos —enquanto a expectativa média de vida no país é de 63,9 anos para os homens e 69,1 anos para as mulheres.
Existe também o caso daqueles que a aposentadoria sequer chegou a virar uma dúvida. Ela simplesmente passou despercebida, de fato e de direito.
Armando Casimiro da Silva, 64, de Itabaiana (78 km de João Pessoa, na Paraíba), é um dos que nem desconfiou da existência do benefício para ele. Ê, meu filho, agora é tarde, diz ao comentar o próprio caso.
Para as mulheres, além desses obstáculos, ainda há uma outra dificuldade. A maioria é definida nos documentos como domésticas ou do lar —e não como agricultoras (não conseguem comprovar o tempo de serviço).
A Previdência desconhece um mundo que o poeta João Cabral de Melo Neto percebeu: existe uma velhice que chega antes dos 30.

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