São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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"Muitos desses figurrrinhas?"

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Na fila para a confissão antes da primeira comunhão. O padre era um alemão alto, vermelho —a gente não dizia "vermelho", mas "encarnado". Notável era o seu sotaque carregado e sua moral carregadíssima. Temíamos a violência de sua cólera e a rigidez de sua virtude.
Nesse tempo não havia revistas masculinas. Circulava entre os guris meia dúzia de velhas estampas francesas, emporcalhadas pelo uso de gerações, explicitando uma sacanagem meio "belle époque". Era pouco, era sórdido, mas era o que o mercado neoliberal da época nos oferecia.
Recomendaram-me que fizesse severo exame de consciência a fim de eficientemente ser perdoado. Inventariei mentiras e desobediências. Não houve nenhuma reunião para chegarmos a um acordo, mas a ele chegamos, cada qual por seus próprios caminhos: nada de vexames, imundícias da carne, patifarias maiores.
Decidi confessar uma surra que dera num guri mais fraco do que eu e uns ovos que roubara das galinhas do vizinho, sem necessidade, só por molecagem. Era uma quota de crimes decente para um menino de dez anos.
O colega à minha frente ajoelhou-se diante do padre. Em voz baixíssima murmurou seus pecados, que não deviam ser muito diferentes dos meus. De repente, ouvi o ameaçador sotaque do alemão: "E o menino ainda terrr muitos desses figurrrinhas?"
Pronto. Pintara sujeira no pedaço. E já que não podia enganar a Deus, resolvi enganar o padre. Cheguei a inventar faltas abomináveis que não cometera, mas não adiantou. Com o sotaque medonho, reforçado por horrendo hálito de repolho, antes mesmo que eu conseguisse desfilar o rosário de meus crimes ele me fulminou: "E o menino também terrr muitos desses figurrrinhas?"

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