São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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Um ano sem Kurt Cobain

ALVARO PEREIRA JUNIOR
EDITOR-CHEFE DO NOTÍCIAS POPULARES

Erramos: 05/04/95
Por problemas de edição, parte do texto do jornalista Álvaro Pereira Junior, editor-chefe do "Notícias Populares", foi omitido na edição de 3 de abril do caderno Folhateen. Segue trecho omitido. "O suposto fim das ideologias não pode significar o fim das angústias, mas sim seu acirramento. Qualquer moleque de 15 anos sabe disso. E onde há angústia tem de haver rock. Teen angst é seu combustível. Cobain e Nirvana acabaram. Mas quando o sangue se solidificar em nossas veias, quando a chuva amarela corroer toda alma e toda compaixão, quando for imensa a vontade de explodir em nanométricos estilhaços de qualquer coisa, ainda vamos nos lembrar de certas canções. E isso talvez baste."
Um ano sem Kurt Cobain
O amor é perigoso. Ele precisa de vítimas. (Trecho do livro "Homeboy", de Seth Morgan, 1990, nunca editado no Brasil)

Faz um ano que Kurt Cobain se matou. Faz um ano que o rock definha.
Há um ano esperamos "the next big thing". Faz pouco menos de um ano que estamos cansados de esperar.
O canhoto Cobain cantava e tocava guitarra em uma banda americana chamada Nirvana. A melhor dos últimos dez anos. Seu cadáver foi encontrado em casa por um eletricista no dia 8 de abril de 1994.
Cobain tinha 27 anos e um filha de dois, Frances. Sua mulher, Courtney Love, líder da banda Hole, viajava a negócios.
Kurt Cobain era a própria história do rock. Tinha um conhecimento enciclopédico de música pop. Cresceu em atmosfera 100% rock and roll: pai sumido, mãe largada e indiferente, zoado na escola porque era muito magrinho, totalmente sem grana em um fim de mundo perto da maior cidade fim-de-mundo do mundo: Seattle.
Provavelmente no dia 5 de abril de 1994, tomado por uma tempestade sináptica quimicamente induzida, Cobain decidiu que ficaria bem mais sossegado se destroçasse os miolos com um tiro na boca.
Nesse sentido, sua morte foi ainda mais cruel que a de gente como Jimi Hendrix, Johnny Thunder (do New York Dolls) e James Honeyman-Scott (do Pretenders). Embora estes sempre arriscassem a própria vida, sempre brincassem com o perigo, acabaram morrendo por acidente.
Cobain não. Como Ian Curtis, do Joy Division, que se enforcou em 1980, ele quis se mandar. Dois Werthers pós-punk.
Dono de uma lucidez criminosamente invulgar, Kurt Cobain cansou de ver como era fácil ter as multidões rastejando a seus pés. Conseguiu fazer da herança punk algo palatável às massas. Sem nunca se vender, nem abraçar as causas fáceis da paranóia politicamente correta.
A ingenuidade de Cobain tinha outro foco. Voltado para dentro.
Na ironia final contra o clichê, contra a banalidade da técnica, Cobain queria que seu último álbum se chamasse "Verse, Chorus, Verse" ("Versos, Refrão, Versos"). Era tudo fácil -difícil- demais.
Cobain acreditava que o rock trazia em si um valor intrínseco, para além do hype e do mercado. Desnorteou-se ao ver que não era nada disso.
Ele próprio era o hype, quisesse ou não.
Cobain destrata jornalistas. A gravadora adora e faz questão de divulgar. Cobain fala mal do Pearl Jam, que ele julga uma banda oportunista, em oposição ao "puro" Nirvana. Mais alguns milhões de discos para ambos os grupos. Cobain faz letras que ninguém decifra. Pouco importa: a audiência inerme quer mesmo é sacudir.
Cobain não entendia o que a indústria pop sabe muito bem pelo menos desde os anos 60: a sinceridade também pode ser uma mercadoria. Ela não é escudo contra nada.
Saída encontrada por Cobain: drogas. Mais especificamente, heroína.
Nirvana gravou três discos, todos esplêndidos: "Bleach", "Nevermind" (que os tornou mundialmente conhecidos, com 5 milhões de cópias só nos EUA) e "In Utero". Lançou ainda uma coletânea de sobras, "Incesticide". "Unplugged in New York", que foi para as lojas no fim de 1994, é obra póstuma.
Cinco álbuns. Mais do que suficiente para provar que Nirvana era uma grande banda. Se Cobain estivesse hoje vivo e lúcido, produtivo, faria rock de primeira linha. Seus parceiros, Chris Novoselic (baixo) e Dave Grohl (bateria), nem tiveram coragem de usar o nome Nirvana em seus projetos atuais.
1994 foi um ano terrível para o rock e 1995 não fica atrás. A escolha de um álbum mediano, "Live Through This", do Hole, como melhor do ano passado nos EUA, evidencia o deserto de idéias em que as guitarras se atolaram.
Sim, há a ironia despachada do Pavement. Há a sofisticação poética do American Music Club. As Throwing Muses ainda fazem pensar com suas baladas esquizóides. Mas isso não basta.
A mais deletéria das heranças do Nirvana é o chamado punk corporativo. Bandas como Offspring, Green Day e Rancid pintam o cabelo de verde, usam penteado espetado, afetam trejeitos apopléticos e emitem um rock de clara influência punk, mas covardemente domesticado.
Não é possível que seja esse o futuro do rock. Não é possível que o cinismo da indústria tenha aflorado de maneira tão impertinente.

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