São Paulo, sexta-feira, 7 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O Sol Enganador" revisita o stalinismo

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Filme: O Sol Enganador
Produção: Rússia, 1994
Direção: Nikita Mikhalkov
Elenco: Nikita Mikhalkov, Nadia
Estréia: Estação Lumière/sala 2, Bristol

Militante nacionalista na cindida Rússia de Ieltsin, Nikita Mikhalkov é hoje curiosamente o cineasta russo de maior prestígio internacional, superando de longe seu cosmopolita irmão Andrei Konchalovski ("Os Amantes de Maria"). Com seus dois últimos filmes, Mikhalkov acumulou o Oscar, o Felix europeu, um Leão de Ouro em Veneza e um Prêmio Especial do Júri em Cannes.
O último deles, "O Sol Enganador", estréia na esteira de sua premiação com o Oscar de melhor filme de língua não-inglesa. Mikhalkov fez tudo: escreveu, dirigiu e protagoniza ao lado de sua filha de seis anos, Nadia. Tudo se passa num único domingo de 1936. A data é fundamental, marcando o auge da fúria persecutória stalinista na então URSS.
Mikhalkov interpreta o expansivo coronel revolucionário Kotov, que encontramos num dia de repouso familiar. Dimitri, ex-namorado de juventude de sua mulher, vai subitamente visitá-los, depois de passar dez anos sem dar notícias. Refinado e cosmopolita, o ex-músico Dimitri demora a revelar-se agente da polícia política.
O tempo é então ocupado por uma série de episódios menores do cotidiano idílico da família de Kotov. "O Sol Enganador" mistura assim o retrato tchecoviano de costumes de "Olhos Negros" (1987) com o nacional-populismo russo de "Urga" (1991). Stálin parece como não mais que um fantasma distante, misterioso e inacessível.
O contraste não poderia ser maior com a visão da era stalinista levada recentemente às telas pelo mano Konchalovski em "O Círculo do Poder" (1992, disponível em vídeo). Lá, a história do projecionista particular de filmes para o ditador apresentava um retrato de um tirano de carne e osso, por vezes até simpático, contra um background de sombras, fome e terror. Aqui, um impalpável e mítico líder paira sobre a alegre rotina de uma luminosa casa de campo.
O atraso na revelação no novo papel de carrasco do diabo cumprido por Dimitri esvazia um pouco a dupla tensão entre o drama existencial (um amigo traidor) e o político (o absurdo dos processos e execuções stalinistas).
Elegantemente acadêmico, como toda a obra de Mikhalkov, "O Sol Enganador" acaba por superar o império da monotonia graças ao nível elevadíssimo das interpretações e ao impacto de seu desfecho. O cinema pós-soviético vai custar a produzir releitura mais melancólica e russocêntrica do stalinismo.

Texto Anterior: 'Epidemia' inventa 'serial killer' molecular
Próximo Texto: 'Sábado' observa contradições do Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.