São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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'Ficar doente mudou minha vida'

CARLOS MARCILIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Minha vivência de doente, apesar de aguda e transitória, humanizou minha ação profissional e tornou mais rico, verdadeiro e de maior significado meu relacionamento com pacientes e alunos.
Sempre fui como todo mundo: sentia a vida não ter fronteiras ou limite. Mas sentia que não ia bem quando acordei naquele dia. Dor... mesmo, não era. Mas sentia um grande e profundo vazio dentro do tórax. Ou então aquela sensação de desconforto e de cansaço, que ia e vinha. Nem mesmo o primeiro cigarro da manhã tinha sabor. Mas não falei nada a Thereza, minha mulher.
Naquele dia, a situação no trabalho iria estar mais tensa que a da véspera. Achei que era hora de jogar a toalha. Pedi que me levassem para o hospital com urgência.
Raimundo Miranda, um colega, levou-me em seu Volks azul. Estava nervosíssimo. A última coisa de que me lembro foi ter-lhe dito que, se escapasse de sua louca disparada por Brasília, certamente tudo terminaria sem problemas.
Lembro que retomei a consciência na UTI de um hospital público. Três faces que nunca vira, com jeito de anjos da guarda, me olhavam. Eram o cardiologista e dois residentes.
Idunaldo Diniz (o cardiologista) perguntou-me: "Você sabe o que houve?" Pensei um pouco e disse que havia tido um pneumotórax. Esta é uma condição em que o ar passa dos pulmões para a pleura causando dores insuportáveis. Já havia tido um antes.
Renato Viscardi, o residente, esboçou sorriso enigmático como quem dissesse: "Tá vendo?... Não é nada disso..." Vi então um eletrocardiógrafo. Dele pendia uma fita de exame cuja extremidade estava nas mãos da residente.
Pedi para ver o traçado. O rosto bonito de Marigilka, a residente, mostrou hesitação. No traçado, a resposta. Só não era tão mais típico de um infarto agudo do miocárdio antero, lateral e septal, porque havia corrente de lesão em tudo que era derivação, como se não houvesse sobrado nada de íntegro nas paredes do coração. Pois é, ali estava a verdade. Ou parte.
Logo percebi uma dor que dilacerava o tórax. Respirar fundo era como se fosse um esquartejamento. Aos poucos soube o motivo.
Eu dera entrada no hospital em completa parada cárdio, respiratória e cerebral. Na entrada do hospital iniciaram um esforço para reanimar quem já estava clinicamente morto. Sorte minha. Funcionou!
Nesse esforço de reanimação em condições adversas, comprimindo e descomprimindo o meu tórax até tomar vários choques elétricos já na UTI, todas as costelas se desprenderam do esterno e várias quebraram-se. Daí a dor que me acompanhou por meses.
No dia da alta fui para casa de amigos. Sentia uma insegurança total longe do hospital e dos três anjos da guarda, a esta altura bons amigos. Com muito apoio da família e dos amigos fui melhorando.
Aloisio Costa e Silva, um amigo médico, disse-me que eu tinha tudo para sair da doença melhor do que eu havia entrado. Tomei estas palavras como meta e acho que isto aconteceu-me de fato.
Gradativamente, enquanto fazia meu cooper diário, sentia meu condicionamento físico melhorar. Aproximava-se o momento da decisão: operar ou não operar.
Foi o professor Osvaldo Ramos que tivera infarto na mesma idade que eu e já havia sido operado que me levou à consulta com o professor Adib Jatene. Foi uma sorte.
Fomos recebidos em uma ampla sala no Hospital Dante Pazzanese. Em torno da mesa estavam sentados quatro ou cinco clínicos e cirurgiões. Jatene apresentou-me o doutor Eduardo Souza. Era o homem do cateterismo das coronárias. A habilidade do Eduardo ao fazer um cateterismo é algo extraordinário.
Dois dias soube que seria poupado da cirurgia. Mas havia uma preocupação que não me dava trégua. Quantos anos mais iria viver? Essa resposta era essencial para mim, casado e pai de cinco filhos com idades entre um e oito anos.
Mas para uma pergunta assim eu não encontrava solução. A melhor evidência que encontrei datava minha sobrevida média em 11 anos. Passei então a viver em função deste termo. Quando atingi a marca, não mais lembrava dela.
Hoje, 17 anos depois, lembro-me do infarto como um evento positivo. Na atualidade estou profundamente envolvido com a necessidade de transplante renal. Somente na Bahia temos cerca de mil pessoas carecendo de doação de rins. O transplante envolve momentos de grande complexidade para a equipe médica, os pacientes e seus familiares. Nestes momentos mais críticos, uma lembrança me tranquiliza: "Meu Deus, se já estive tanto do lado de lá (da doença) quanto no de cá (da medicina), como é que eu não posso ajudar nesta situação?" E sigo em frente...

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