São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pauline Kael interpreta o papel de crítica

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não é preciso ser cinemaníaco para gostar de "1001 Noites no Cinema", antologia de textos da crítica norte-americana Pauline Kael, editada pela Companhia das Letras, com seleção de Sérgio Augusto.
Na verdade, um dos méritos desta coletânea de resenhas curtíssimas e fulminantes está no fato de Kael não levar o cinema excessivamente a sério. Exige diversão e talento acima de tudo; e, se sabe reconhecer as grandes obras-primas, é tão dura com o cinema pretensioso e "artístico" quanto com os clichês e emoções baratas de Hollywood.
Seus textos -originalmente escritos para o roteiro da semana da revista "New Yorker"- proporcionam tanta diversão quanto a que exigem dos filmes comentados.
Pauline Kael é especialmente aguda quando descreve o desempenho, ou melhor, a personalidade dos atores. Omar Sharif "interpreta momentos de paixão como se estivesse ajeitando o colarinho (...) não tem nada por dentro, nem mesmo uma sugestão de emoção reprimida".
Em "Marrocos", Marlene Dietrich "está no auge de sua perfeição maliciosa -frio descaramento e uma insinuação de diversão... (é) ainda a Dietrich alemã, não a quase abstrata, internacional, que mais tarde se tornou". Robert Redford, em "Perigosamente Juntos", tem uma "atuação afável", que é apenas uma lembrança daquilo que tinha feito dele um astro.
E assim por diante. A atenção que Pauline Kael dá ao charme ou à ausência de charme dos atores é bem um sinal de que, como crítica, ela se põe no lugar do espectador comum -para quem, afinal, a presença de determinado astro é motivo preponderante para ver um filme.
Mas essa "espectadora comum", entregue à rotineira tarefa de indicar, em um parágrafo, se o filme presta ou não, é ao mesmo sofisticada e cética. Não se deixa enganar.
Veja-se o que diz de "A Noviça Rebelde": "A quem poderia ofender esta opereta? Apenas àqueles dentre nós que detestam ser manipulados e sabem como são baratas e prontas as reações que nos fazem sentir."
Filmes refinados nem sempre são tratados com maior condescendência. "Interiores", de Woody Allen, "é um manual de cacoetes dos filmes de arte". Sobre "Violência e Paixão": "Os filmes de Visconti têm sempre uma subcorrente de tolice, e neste a tolice fica muito perto da superfície".
É quase irresistível continuar citando a autora; trata-se de um daqueles casos em que a pessoa expressa tão bem, com tanta vivacidade, o que pensa que nos sentimos inclinados a concordar com ela -mesmo que pensemos de modo diferente.
Mas fiz alusão, alguns parágrafos acima, ao problema que está oculto em seus brilhantes exercícios de independência crítica. É que, de um lado, Pauline Kael se coloca na função de "espectadora comum". Seus textos são do tipo "jornalismo de serviços", visando indicar, rapidamente, que tipo de produto está sendo oferecido ao consumidor de filmes.
Por outro lado, essa espectadora comum é totalmente pessoal, idiossincrática, mordaz, desconfiada. Ao mesmo tempo faz parte e não faz parte do público a que se dirige. Trata o cinema como diversão de massa, seus próprios artigos são de largo consumo nos Estados Unidos, mas nem ela nem os seus leitores estão acomodados à burrice da indústria cultural.
Num livro ao mesmo tempo brilhante e esquemático ("A Função da Crítica", ed. Martins Fontes), o marxista inglês Terry Eagleton fala de situação semelhante no domínio da crítica literária. No século 18, o ensaísmo jornalístico e a crítica, de modo geral, viviam uma situação de homogeneidade com o público leitor. Um crítico como o dr. Johnson, por exemplo, podia colocar-se no papel do "leitor comum" -"the common reader"-, partindo das mesmas convicções e padrões de gosto que seu público.
A história posterior determinou um mútuo afastamento entre crítica e público comum. Sobre uma famosa revista de crítica literária deste século, "Scrutiny", Engleton resume o dilema: "Desejava recriar uma esfera pública com a convicção de que só uma minoria possuía uma capacidade de discernimento verdadeira".
Cria-se o que Eagleton chama de "proposição crítica exemplar": a pergunta "isso é assim, não é?". Mas a essa abertura para o diálogo segue-se uma "certa insistência autoritária, que prevê, com convicção, a resposta 'sim' ".
Lendo Pauline Kael, encontramos a todo o momento esse tipo de proposição. Quando ela descreve Omar Sharif ou Robert Redford, sem dúvida parece estar dizendo "eles são assim, não são?". Mas de certo modo a resposta do leitor -o "sim" que ela espera da pergunta- não importa muito. Seus julgamentos sobre filmes podem ser peremptórios, enfáticos, mas não são necessariamente autoritários.
Isto, por várias razões. A primeira está no próprio gênero a que ela se dedica. Como se trata de textos muito curtos, a rapidez da escrita, a premência da comunicação justificam estilisticamente seus juízos mais abruptos. Em segundo lugar, o juízo crítico se confunde com a própria descrição do objeto criticado. Há, com efeito, uma mistura especialmente feliz entre opinião e informação em suas resenhas.
Em terceiro lugar, o próprio texto se apresenta não como análise técnica a partir de um ponto de vista especializado, mas como objeto de consumo, de entretenimento em si mesmo. Seria o caso de dizer que cria seu próprio público; um nicho de leitores que, certamente, não equivale ao meio cultural homogêneo da antiga esfera pública burguesa do século 18, mas que também não corresponde à situação de brutal distanciamento entre o leitor e o especialista, tal como descrita por Eagleton.
O problema, nesse caso, é como evitar o excesso de confiança na comunicação livre de idéias, num ambiente sitiado e frágil. Menos do que idéias ou teorias, Pauline Kael nos comunica "atitudes", reações críticas, emoções diante dos filmes que viu.
Nos seus textos, Kael "interpreta" o filme, não como especialista, mas como uma pessoa que encarna, mimetiza, exagera, encena suas emoções. É como se ela própria fosse uma atriz -das mais persuasivas e charmosas, por sinal.

Texto Anterior: Mercado de som ganha escola técnica em SP
Próximo Texto: Concerto mostra a "Paixão" de Bach
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.