São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Decifrar Clarice

BERTA WALDMAN
CLARICE LISPECTOR, UMA VIDA QUE SE CONTA

Nádia Battella Gotlib Ática, 460 págs. R$ 29,90
O romance ``Léxico Familiar", de Natália Guinzburg, inicia com uma advertência intrigante. A autora afirma que não inventou nada: lugares, nomes de pessoas, situações. Em contrapartida, sugere que seu livro seja lido como um romance, isto é, ``sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer".
Embora a razão da ressalva se baseie nos mecanismos escorregadios da memória incapaz de reter os fatos em sua totalidade, há nela uma questão de fundo mais ampla: o reconhecimento da impossibilidade de acesso a uma realidade não adulterada, de uma visão neutra das coisas tais como são.
É essa mesma questão que reaparece, de diferentes maneiras, em todo relato calçado num compromisso com a verdade, quer seja ele romance histórico, memorialismo, autobiografia ou biografia.
No caso da biografia, que é o que interessa de momento, como montar o elenco de dados relativos a uma vida para que venha à tona o biografado? Como proceder para capturar a singularidade de uma figura, quando o particular, o único, é sempre um lugar vazio?
A intangibilidade de seu objeto, entretanto, não desqualifica a biografia enquanto gênero narrativo capaz de dar conta de uma história de vida. A prova disso são as biografias bem sucedidas. Mas a questão é delicada, porque esse tipo de relato se sustenta no difícil equilíbrio entre biógrafo e biografado, presente e passado, não consentindo nem o discurso absoluto nem tampouco a singularidade absoluta, construindo-se os sentidos no entrecruzamento desses opostos. Porque é um trabalho de montagem, de interpretação, nenhuma biografia é definitiva, e sempre será possível refazê-la a partir de dados basicamente iguais (1). Sua meta é fazer viver o biografado, mais ou menos como o ficcionista faz viver suas personagens.
O motivo dessas ponderações é a biografia de Clarice Lispector, de autoria de Nádia Batela Gotlib. Professora de literatura brasileira, há anos Nádia vem se dedicando ao estudo da obra de Clarice Lispector, tendo participado, com seu trabalho, dos principais eventos e publicações relacionados com a escritora. Com isso, quero dizer que a biografia que agora se publica é, com certeza, resultado de muito empenho e paixão.
A pesquisa de fontes que está em sua base é extensa, exaustiva. Vai do levantamento de jornais e revistas da época, passa pela correspondência da escritora com a família e com os amigos, inclui depoimentos das irmãs (inclusive o livro autobiográfico de Elisa Lispector), primos, vizinhos, escritores, amigos, e da própria Clarice; inclui, ainda, entrevistas, fotos, além da obra completa da escritora, mesmo as crônicas que não foram publicadas em livros.
Trata-se, sem dúvida, do mais completo levantamento da vida da escritora feito entre nós (2), o que desde já destaca o livro de Nádia como referência obrigatória aos estudiosos da obra de Clarice Lispector e ao público leitor da ficcionista que, aliás, vem se expandindo cada vez mais.
Todos os trajetos percorridos por Clarice, da longínqua Ucrânia até o Brasil, Maceió, Pernambuco, Rio, outra vez Europa, Estados Unidos; a infância pobre, os estudos, a formação, o trabalho jornalístico, os famosos pseudônimos com que assinou parte desse trabalho, a ficção, os amigos, o casamento, os filhos, tudo isso e muito mais pode ser lido na biografia de Nádia, que organiza em geral seu material cronológica e linearmente, partindo do nascimento da escritora para chegar a sua morte.
Por mais que o trabalho biográfico se qualifique como o relato daquele que pode dizer ``eu vi, eu ouvi, eu pesquisei, eu sei", o que lhe dá credibilidade, Nádia é consciente de seus limites e, por isso, seu texto é pontuado por indagações: ``Como construir uma identidade?" ``Teria (Clarice) assistido ao teatro iídiche?" ``Teria ido ao cinema?" ``A que filmes teria assistido?" ``Como teria sido para Clarice, depois de tantos anos, rever a Europa, onde havia vivido por muito tempo, aproximadamente por sete anos?" ``E como teria sido essa outra e última viagem à Europa, em 1977?" Se essas (e outras) perguntas sem resposta possível sinalizam o biógrafo que sabe que algo lhe escapa sempre, elas demarcam também um lugar autoral. Em contrapartida, o título da biografia aponta para o desejo de se apagar esse lugar. Afinal, uma vida que se conta equivale a uma vida que é contada. Por quem?
Em certa medida, pela própria Clarice que, num movimento obsessivo, foi se transformando cada vez mais no tema de sua ficção e, num contramovimento, se queixava de ter de escrever suas crônicas no registro pessoal.
É bem curioso, a esse propósito, a carta que Maury Gurgel Valente envia a Clarice, com o intuito de se reconciliar com a mulher. Nela, o marido cria uma relação analógica entre a crise por que o casal passava e aquela vivida pelas personagens de ``Perto do Coração Selvagem". Assim, ele vai justapondo os conflitos de Clarice aos de Joana, enquanto se penitencia por não ter dado à mulher o apoio e a compreensão que ela com certeza esperava dele, Maury-Otávio.
``Perdoe-me (..) não ter sabido, embora sentisse difusamente a unidade de ambas, de não ter sabido, em dezesseis anos de casamento, realizar a reconciliação de ambas. Não ter sabido convencer Joana de que ela e Lídia (personagem de ``O Lustre") eram, e são, a mesma pessoa em Clarice." (pág. 319)
Aí, o marido-leitor lê o conflito realmente vivido naquele representado ficcionalmente e reconhece a voz da mulher através de outras vozes, multiplicando seu mistério e sua perplexidade no jogo de espelhos que trava com suas personagens.
Se é verdade que não podemos passar livremente de um domínio a outro, pois a relação entre autor e personagem não é uniforme nem direta, é possível destacar algumas linhagens de figuras femininas na obra de Clarice, sendo que todas elas, de algum modo, têm a ver com a autora que, com certeza, era menos mas também mais do que Joana, Lídia, Lucrécia, Lóri, Ângela, Ana, Macabéia etc. A extensão de quem conta no contado, entretanto, não desloca a biógrafa do lugar autoral. E há marcas que delimitam esse lugar.
Uma delas é a maneira como se organiza o material pesquisado. Embora manifeste dúvida com relação aos fatos arrolados (``Fatos também não trazem garantia" pág. 433), fica inerente ao texto final uma crença positivista de que os fatos contenham a verdade. Por isso, todos eles precisam ser elencados. Reforçando esse traço, há um excesso de comentários, paráfrases e interpretações, que aludem a um desejo impossível de se realizar: o de dizer tudo.
Esse horizonte de totalização projetado gera a exaustividade de notações e interferências. Para que parafrasear os romances e os contos? Por que comentar até mesmo passagens corriqueiras de entrevistas, cartas, depoimentos etc? Em meio a esses comentários e comentários de comentários, qual o lugar que sobra para fazer soar a voz do outro?
Por outro lado, Nádia acompanha muito de perto o seu objeto, por isso, suas observações são sempre imanentes e imediatas. Como falta distância, escapam os planos mais gerais. Qual o nexo que se poderia estabelecer entre a vida e o conjunto da obra de Clarice Lispector? Como vida e obra dialogam com o seu tempo, para além das relações de amizade e do convívio próximo com escritores e personalidades marcantes de seu tempo?
Uma tática assumida pela narrativa tradicional é fornecer informação ``completa", para que, ao final da experiência de leitura, o leitor preencha a expectativa de saber o que aconteceu e por quê. Em contrapartida, um dos traços marcantes das novas narrativas é frustrar deliberada e calculadamente o desejo de conhecer tudo.
A partir do critério da exaustividade, depreende-se que a tentativa de Nádia foi a de organizar uma história única e plausível de Clarice Lispector. Se, em vez de uma história plenamente desenvolvida, a ação fosse porosa, intermitente, transportada através de sugestões e do silêncio daquilo que não pode ser dito univocamente, o convite seria o de uma leitura múltipla, e isso não significaria que a narrativa foi privada de ``sentido", mas que o ``sentido" não está necessariamente ligado a uma trama.
Tal como se constrói a biografia em questão, o leitor é conduzido passo a passo por uma trilha metonímica de dados, informações, atributos, comentários, valorações, cujo sentido último só poderia ser alcançado se o conjunto se imbricasse em metáfora, fazendo emergir a figura do biografado. Aliás, sem o dispositivo que franqueie o deslizamento de sentidos da cadeia metonímica para a metáfora, como é possível enfrentar com sucesso a intangibilidade do objeto biográfico?
Mas é, me parece, justamente o excesso de empatia da biógrafa com seu objeto que frustra a emergência da metáfora. Um pouco como a menina Ofélia, personagem do conto ``A legião estrangeira", que mata o pintinho porque o queria muito, mas não consegue o acordo necessário entre o desejo e o objeto desejado. Inadvertida, avança o sinal e sufoca o pintinho.
Também eu caí nas malhas do excesso interpretativo, caminho vertiginoso de interpretação da interpretação. Agora é a vez do leitor de encarar o enigma daquela que diz de si mesma: ``Sou secreta por natureza".

1. Ver, a propósito, o texto de Dante Moreira Leite ``Ficção, Biografia e Autobiografia", em ``O Amor Romântico e Outros Temas", São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1964.
2. Existe uma outra biografia de Clarice Lispector, escrita pela canadense Claire Varin, baseada na tese de que o pluralismo que está na base da vida da escritora seria determinante do traçado de sua obra. Ver, a propósito, ``Langues de Feu - Essai sur Clarice Lispector", Quebec, Éditions Trois, 1990.

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