São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Uma inacabada arte da fuga

JOSÉ MIGUEL WISNIK
OS FUNDAMENTOS RACIONAIS E SOCIOLÓGICOS DA MÚSICA

Max Weber Tradução: Leopoldo Waizbort Edusp
Póstumo, inacabado e aridamente técnico, um texto de Max Weber ficou relegado, quase sempre, à condição de obscuro apêndice à margem da obra sociológica do autor: ``Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música". A edição brasileira desse texto, cuidadosamente traduzido, introduzido e anotado por Leopoldo Waizbort, contendo ainda esclarecedor prefácio de Gabriel Cohn, encaminha-se na direção contrária: aquela que confere ao ensaio, escrito por volta de 1911, o estatuto privilegiado de antecipação ou esboço de uma sociologia da arte que Weber projetou sem chegar a realizar. Nesse esboço poderiam ser distinguidas as linhas mestras da obra weberiana em suas virtuais consequências estéticas, de interesse considerável para a compreensão do conjunto.
Só no Ocidente, diz Weber, constitui-se uma música baseada em acordes, na qual se articulam os processos melódicos e harmônicos através de uma lógica interna que visa à congruência exaustiva de todas as relações sonoras, sucessivas e simultâneas. A perseguição dessa especificidade inclui implicitamente o ensaio musical de Max Weber no contexto dos grandes temas de sua sociologia: a produção de significações de validade universal no racionalismo do Ocidente vem junto com o ``desencantamento" do mundo moderno, a separação das esferas antes unidas da religião, da moral, da ciência e da arte, e o desenvolvimento de lógicas autônomas das quais o sistema tonal que singulariza a música européia seria um exemplo privilegiado.
Embora curto, concentrado, e internamente desigual, pode-se dizer que o ensaio de Max Weber ultrapassa em muito, pela ambição totalizante dos problemas levantados, o âmbito habitual das musicologias. Ao mesmo tempo, enquanto sociologia, o texto pode estranhar o sociólogo pela relevância incansável que concede ao pormenor técnico interno à ordem sonora: seu objeto não é a vida social contígua à música, simplesmente, mas a vida social que se traduz, se se pode dizer assim, nos próprios modos de organização dos sons. Max Weber persegue implacavelmente o seu tema com uma abundância de dados acústicos, históricos, analítico-musicais e etnomusicológicos que, embora recolhidos nas fontes disponíveis da época, e em especial na obra Helmholtz (``Doutrina das Sensações Sonoras Como Fundamento Fisiológico para a Teoria Musical"), só estariam na verdade acessíveis para um não-músico como ele no contexto saturado de música da cultura alemã. Nesta, a música foi reconhecida não poucas vezes, como por Weber, Thomas Mann ou Adorno, como sucedâneo por excelência, desencantado e ambivalentemente assumido, da religião.
Ao percorrer exaustivamente as vicissitudes que estão na base de toda ordenação do universo sonoro, Max Weber acaba por revisitar, curiosamente, antigos paradoxos que assombraram os pensadores da música num arco tão vário como o que vai por exemplo de Pitágoras a Santo Agostinho. A saber: toda ordenação musical está baseada em certos fundamentos racionalizantes, dados pelas relações numéricas mais simples, como a de 1 para 2, que constitui o intervalo de oitava, e seus derivados, compostos pelas relações básicas entre os números 2, 3 e 5 (como a quinta, a quarta e a terça). No entanto, por mais racionalizada que possa ser, essa ordem nunca se move sem assimetrias, desequilíbrios e ``falhas" que são inerentes à natureza sonora: a oitava se divide harmonicamente em duas parte desiguais -a quinta e a quarta-, quando não é cortada ao meio pelo trítono instabilizador, o ``diabolus in musica". Assim também um ciclo de quintas justas, obedecendo às suas propriedades acústicas perfeitas, nunca retorna ao ponto de partida, como uma linha circular que nunca se fechasse sobre si mesma, num erro espiralante. Nessa ordem de idéias, há sempre um grau de ``irracionalidade" inseparável de toda racionalização do espaço sonoro. Para Max Weber, a música européia de base melódico-harmônica, surgida da polifonia vocal, realizaria uma espécie de quadratura do círculo, ao curvar a irracionalidade da natureza sonora em benefício de um máximo de racionalidade possível, processo que se fechou no século 18 com a adoção do ``temperamento igualado" como sistema de afinação. Nela, vigoraria uma espécie de engenharia sonora, gerando escalas ``essenciais"' integradas a um sistema harmônico, ao contrário das músicas orientais, que se baseariam em bricolagens intervalares obtidas por aproximação melódica, padecendo de uma espécie de ``paralisia" advinda da menor clareza de seus próprios fundamentos.
Pode-se dizer que Max Weber funda, como afirma Waizbort na introdução à edição brasileira, a sociologia da música. Essa fundação consiste na que é possivelmente a primeira consciência explícita e sistemática da diferença constitutiva da música européia em relação às músicas do mundo, antes difusa e aqui afirmada de maneira compacta. Mas nessa afirmação reside justamente a força e o limite dos ``Fundamentos". Cerradamente referido aos aspectos melódico-harmônicos, que prevalecem na música européia, e sem discutir aspectos rítmicos ou timbrísticos, o ensaio padece da ilusão da universalidade do critério de racionalidade ali adotado, e da superioridade estrutural da música tonal européia sobre as outras. Não porque ela não o seja, nos níveis de articulação apontados, mas justamente porque no próprio momento em que Max Weber escrevia o ensaio a música européia sofria transformações sintomáticas que abalavam os fundamentos daquela racionalidade, nos termos tonais em que foi descrita por Max Weber: dois anos antes Schoenberg escrevia a primeira obra atonal e gestava o dodecafonismo. É irresistível pensar que o ensaio de Max Weber, que fazia o primeiro grande balanço da especificidade da música tonal em contraponto com as músicas não-tonais, só foi possível no momento exato em que se formulava, muito perto dele, a idéia do fim da tonalidade.
Se para Max Weber o atonalismo era possivelmente, fugindo à racionalidade da ordenação tonal, mais uma vez o retorno do fastio de estetas cortesãos quando extrapolam a sua especialidade em direção ao preciosismo, sabemos que para Adorno e Thomas Mann era bem mais que isso. De todo modo, nesses três alemães a música é o campo de batalha eleito da luta da razão e da irrazão. Em Adorno, como a sonata densa e agônica que vai de Beethoven a Schoenberg, de Hegel à dialética negativa, contra o canto e o encanto da barbárie que vem de dentro e de fora da música. Em Thomas Mann, como o melodrama irônico-paródico do ``Doutor Fausto", em que o ``diabolus in musica" é a chave da alma e da sua perda pelo homem moderno. Em Max Weber, menos irônico e menos dialético, como uma sociologia do código musical cujas bases polifônicas, dadas as intrincadas relações estabelecidas entre escalas e culturas, e guardadas as devidas proporções, talvez possa ser vista como uma inacabada arte da fuga.

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